Bíblia, Magistério e Tradição versus Sola Scriptura

A Igreja Católica ensina-nos que Cristo nosso Senhor, plenitude da Revelação, mandou os Apóstolos pregar o Evangelho como fonte de toda verdade salvífica e de toda norma de conduta, transmitindo-lhes assim os bens divinos: o Evangelho prometido pelos Profetas, que Ele mesmo cumpriu e promulgou com sua boca.

A transmissão do Evangelho, segundo o mandato do Senhor, realizou-se de duas formas:

Oralmente: Os Apóstolos, com a sua pregação, os seus exemplos, as suas instruções, transmitiram oralmente o que tinham aprendido das obras e ensinamentos de Cristo e o que o Espírito Santo lhes ensinou.

Por escrito: Os próprios Apóstolos e outros da sua geração puseram por escrito a mensagem da salvação, inspirados pelo Espírito Santo.

À transmissão de forma oral chamamos “Sagrada Tradição” (ou mais brevemente neste contexto por “Tradição”) e à transmissão de forma escrita chamamos “Sagrada Escritura”. Ambas estão intimamente unidas e compenetradas, porque surgindo ambas da mesma fonte, fundem-se de certo modo e tendem para um mesmo fim.

Definição de tradição

Mas a palavra “tradição” em si mesma refere-se apenas à transmissão de crenças, ensinamentos e práticas tanto por meios orais ou escritos. Isto é o que significa tradição: uma mensagem que passa de mão em mão, de geração em geração.

A Tradição na Bíblia

Se nos perguntarmos o que a Bíblia diz a respeito da palavra tradição, encontraremos que a resposta varia dependendo do tipo de tradições a que se faça referência, entre as quais estão:

Tradições Humanas

São tradições cuja origem é o homem, não necessariamente são más, exceto se forem costumes ou comportamentos contrários aos mandamentos ou à vontade de Deus. Somente nessas circunstâncias vemos que Jesus rejeita esse tipo de tradições1:

“E ao ver que alguns dos seus discípulos comiam com mãos impuras, ou seja, não lavadas, – é que os fariseus e todos os judeus não comem sem se lavarem as mãos até o cotovelo, apegados à tradição dos antigos, e ao voltar da praça, se não se banharem, não comem; e há outras muitas coisas que observam por tradição, como a purificação de copos, jarros e bandejas -. Por isso, os fariseus e os escribas perguntam-lhe: «Por que os teus discípulos não vivem conforme a tradição dos antepassados, mas comem com mãos impuras?» Ele disse-lhes: «Bem profetizou Isaías acerca de vós, hipócritas, como está escrito: Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me prestam culto, pois ensinam doutrinas que são preceitos de homens. Deixando o preceito de Deus, apegais-vos à tradição dos homens.» E dizia-lhes também: «Como bem invalidais o mandamento de Deus para manter a vossa tradição! Porque Moisés disse: Honra o teu pai e a tua mãe e: quem amaldiçoar o pai ou a mãe, seja punido com a morte. Mas vós dizeis: Se alguém disser ao pai ou à mãe: «Aquilo que de mim poderias receber como ajuda declaro-o Corbã – isto é: oferta -», já não lhe permitis fazer nada pelo pai e pela mãe, anulando assim a Palavra de Deus pela vossa tradição que transmitistes; e fazeis muitas coisas semelhantes a estas».” (Marcos 7,2-13.)

Jesus rejeita aqui tradições cuja origem eram costumes humanos aos quais os fariseus se apegavam, como lavar as mãos antes de comer, a purificação dos objetos, inclusive utilizavam desculpas para se livrar da obrigação de sustentar os seus pais. A esse mesmo tipo de tradições o Apóstolo Paulo refere-se quando fala de tradições humanas “segundo os elementos do mundo e não segundo Cristo”:

“Vede que ninguém vos escravize através da vã falácia de uma filosofia, fundamentada em tradições humanas, segundo os elementos do mundo e não segundo Cristo.” (Colossenses 2,8)

Paulo distingue estas tradições “segundo o mundo”, das tradições da Igreja baseadas no ensinamento de Jesus, e por isso a aclaração: “e não segundo Cristo”.

Tradições da Igreja

Há outro conjunto de tradições que Paulo não condena e manda a preservar:

“Louvai-vos porque em todas as coisas vos recordais de mim e conservais as tradições tal como vos transmiti.” (1 Coríntios 11,2)

“Assim pois, irmãos, mantende-vos firmes e conservai as tradições que aprendestes de nós, seja por palavra ou por carta.” (2 Tessalonicenses 2,15)

“Irmãos, ordenamos-vos em nome do Senhor Jesus Cristo que vos afasteis de todo irmão que viva desordenadamente e não segundo a tradição que de nós recebestes.” (2 Tessalonicenses 3,6)

Nestes textos distingue-se entre os diferentes tipos de tradição, e é o mesmo Apóstolo que por um lado ordena afastar-se das tradições “segundo os elementos do mundo e não segundo Cristo” e que por outro lado ordena manter as tradições que receberam dele e do resto dos Apóstolos.

É importante notar que São Paulo não está falando somente daquelas tradições que receberam por escrito, mas também daquelas que receberam de forma oral ou “de viva voz”.

Paradosis. Palavra grega usada na Bíblia para tradição

A palavra grega usada em todos os passagens anteriores é “paradosis” que significa literalmente “tradição”. Em Mateus 15,2 e Colossenses 2,8 é usada para descrever tradições humanas, mas em 1 Coríntios 11,2 e 2 Tessalonicenses 2,15; 3,6 é usada para descrever tradições apostólicas.

Não é casual que em muitas traduções protestantes da Bíblia, nos passagens onde “paradosis” é usada para referir-se a tradições humanas é traduzida exclusivamente com a palavra “tradição”, mas nos passagens em que é usada para significar tradições apostólicas é substituída por palavras como “doutrinas” ou “instruções”. Embora se possa alegar que são sinônimos, o efeito que produz é que os leitores tendem a associar a palavra “tradição” exclusivamente com tradições humanas. Não é de estranhar que os protestantes sintam tanta aversão às tradições quando as suas próprias Bíblias traduzem de forma seletiva esta palavra.

Evidentemente os tradutores destas Bíblias sabem disto, pois esta palavra (didaché) é usada também em Marcos 7,7 e lá traduzem corretamente como “doutrinas”. Em Marcos 7,5 aparece a palavra “paradosis” e eles traduzem corretamente como “tradição”.

Validade da Tradição Oral

Uma vez feita a distinção entre aquelas tradições humanas e as tradições apostólicas, é oportuno aprofundar na validade que tem a tradição como parte da Revelação do Evangelho:

Uma palavra grega afim a tradições é “paradidomi” cujo significado é “entregar”, “transmitir” e é usada pelo menos sete vezes para fazer referência a tradições cristãs:

“Visto que muitos têm tentado narrar ordenadamente as coisas que se verificaram entre nós, tal como nos foram transmitidas pelos que desde o princípio foram testemunhas oculares e servidores da Palavra.” (Lucas 1,1-2)

Lucas afirma que estas tradições que têm sido transmitidas, eram narrações fiáveis de testemunhas oculares. Estas tradições, como já vimos em passagens como 2 Tessalonicenses 2,15, eram também orais “de viva voz”, e não por isso eram consideradas menos fiáveis:

Pois eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou pão, depois de dar graças, partiu-o e disse: «Este é o meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim».” (1 Coríntios 11,23-24)

No passagem anterior, Paulo não explica detalhadamente como fazer a fração do pão, simplesmente recorda-lhes o que já lhes transmitiu oralmente, e dá-lhes exortações e recomendações finais a este respeito.

Por esta razão, Paulo esclarece que transmite o que antes recebeu:

Pois vos transmiti, em primeiro lugar, o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras.” (1 Coríntios 15,3)

“Amados, tinha eu muito empenho em escrever-vos acerca da nossa comum salvação e vi-me na necessidade de o fazer para vos exortar a lutar pela fé que foi transmitida aos santos de uma vez por todas.” (Judas 3)

“Pois mais lhes valeria não ter conhecido o caminho da justiça do que, depois de o conhecerem, voltar atrás do santo preceito que lhes foi transmitido.” (2 Pedro 2,21)

Inclusive há passagens onde fica evidente a preferência de João de transmitir o Evangelho de forma oral em vez de escrita:

“Ainda que tenho muito que vos escrever, prefiro não o fazer com papel e tinta, mas espero ir ter convosco e falar-vos cara a cara, para que a nossa alegria seja completa.” (2 João 12)

Novamente aí, João também (tal como Paulo) utiliza a expressão “cara a cara” para referir-se à transmissão da mensagem do Evangelho de forma oral. É importante notar que João não está a dizer que quer ir explicar-lhes a carta; para ele é mais importante o ensino que lhes pode dar oralmente do que aquilo que eles possam ler. Sabe que com a sua pregação oral a alegria do povo será completa. Eles estavam conscientes de que Jesus os mandou pregar, não escrever (Mateus 28,20), daí que apenas cinco discípulos deixaram parte do seu ensino por escrito: Pedro, João, Tiago Menor, Judas e Mateus, enquanto o resto dos doze pregava sem papel.

Isto também se reflete no pedido de Paulo a Timóteo acerca daquilo que lhe ouviu (forma oral), de transmiti-lo a homens fiéis e capazes, que por sua vez possam instruir a outros.

“e o que de mim ouviste na presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam capazes, por sua vez, de ensinar a outros.” (2 Timóteo 2,2)

Outra palavra grega utilizada na Bíblia relacionada com a tradição da Igreja é “paralambano”, que significa “recebido”. Esta palavra aparece pelo menos sete vezes em relação à tradição cristã e apostólica:

“Lembro-vos, irmãos, o Evangelho que vos anunciei, que recebestes e no qual permaneceis firmes, pelo qual também sois salvos, se o guardardes tal como vo-lo anunciei… Caso contrário, teríeis crido em vão!” (1 Coríntios 15,1-2)

Observe que a transmissão desta mensagem era não só de forma escrita, mas também oral, era um Evangelho anunciado: “Lembro-vos, irmãos, o Evangelho que vos anunciei”. E é por isso que os primeiros cristãos acolheram esta pregação apostólica, não como ensinos humanos (apesar de serem anunciados por homens) mas como palavra de Deus em si:

“Por isso também nós sem cessar damos graças a Deus, porque, ao receberdes de nós a palavra de Deus que vos pregámos, a acolhestes, não como palavra de homens, mas, como realmente é, como palavra de Deus, que também opera em vós, os que acreditais.” (1 Tessalonicenses 2,13)

A palavra de Deus era principalmente “pregada”, e isso tinha de ser assim, pois nesse ponto ainda não existia o que hoje conhecemos como Novo Testamento. Estima-se que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito entre os anos 65-75 d.C., o Evangelho de Mateus entre 64-110 d.C., o Evangelho de Lucas depois de 70 d.C., e o Evangelho de João provavelmente entre 95-100 d.C. Isto sem contar que o cânone do Novo Testamento foi determinado em 397 d.C. Mesmo após isso, a pregação oral era amplamente utilizada, já que transcrever uma Bíblia podia levar de 10 a 20 anos de trabalho de uma pessoa, o que significava um custo imenso2.

Escritura, Magistério e Tradição

Assim, desde as épocas mais remotas da Igreja, os cristãos têm formulado teologia baseada em três pilares fundamentais: Escritura, Magistério e Tradição. A Escritura e a Tradição serviam como princípios materiais da teologia, pois continham os ensinos recebidos dos Apóstolos por meios orais e escritos, e era o Magistério da Igreja que permitia saber com segurança o significado correto da Revelação, funcionando como princípio formal da teologia.

Entende-se por Magistério, o ofício de interpretar autenticamente a Revelação oral ou escrita, exercido em nome de Jesus Cristo, pelos bispos em comunhão com o sucessor do Apóstolo Pedro. O Magistério era responsável por manter a ortodoxia da doutrina cristã, de protegê-la das distorções daqueles que a malinterpretavam e deturpavam. A este respeito, o Apóstolo Pedro deixa várias advertências:

“Antes de mais, saibam isto: nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal; pois nunca uma profecia foi trazida pela vontade humana, mas homens santos de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo.” (2 Pedro 1,20-21)

“A paciência do nosso Senhor considerai como salvação, como também vos escreveu o nosso amado irmão Paulo, segundo a sabedoria que lhe foi dada. Fala disto também em todas as suas cartas, nas quais há algumas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também as outras Escrituras, para a sua própria perdição. Vós, pois, amados, prevenidos como estais, vigiai, não seja que, levados pelo erro desses libertinos, percais a vossa firmeza.” (2 Pedro 3,15-16)

A Reforma Protestante e a Sola Scriptura

No capítulo seguinte, analisar-se-á profundamente este ponto. Neste, limitar-nos-emos a dizer que o modelo onde os crentes apenas se regem pelo que eles entendem da Escritura não tinha precedentes na história da Igreja. Nunca foi a solução para os conflitos que surgiam que cada um definisse separada e individualistamente cada doutrina de fé. Um exemplo disso encontramos já no capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos, onde se narra o primeiro problema grave vivido pela Igreja. Foram os Apóstolos, unidos aos bispos e presbíteros assistidos pelo Espírito Santo, que resolveram a questão.

“Que decidimos o Espírito Santo e nós não vos impor mais cargas que estas indispensáveis: abster-se do sacrificado aos ídolos, do sangue, dos animais estrangulados e da impureza. Fareis bem em vos guardar destas coisas. Adeus.” (Atos 15,28-29)

Da mesma maneira, e através dos diferentes Concílios Ecuménicos e definições magisteriais, a Igreja conseguiu erradicar os diferentes erros ao longo da história e manter-se unida doutrinalmente. No entanto, agora, graças à doutrina dos reformadores, nenhum crente tinha que se submeter a estas decisões se considerasse que não estavam de acordo com a sua própria interpretação da Bíblia. Os dogmas passaram a ser relativos ao julgamento de cada pessoa.

Embora esta abordagem tenha permitido aos reformadores usurpar a autoridade do Magistério, também deu a cada pessoa o mesmo direito. A grande contradição com o seu próprio princípio foi sofrida na própria carne quando, de forma alarmante e em número cada vez maior, surgiram dissidentes que diferiam deles em pontos que consideravam fundamentais (e não tão fundamentais). Como demonstraremos mais adiante, quando os reformadores sentiram que a sua “Reforma” começava a fragmentar-se em seitas, deixaram de lado o princípio do julgamento privado na prática, e na maioria dos países protestantes, a Sola Scriptura converteu-se na Sola Scriptura ao modo Lutero, ao modo Calvino, ao modo Zwinglio, ou ao modo do reformador de turno3, pelo menos enquanto estes puderam manter o seu domínio. Hoje em dia, há mais de 30.000 denominações protestantes distintas, e o número continua a crescer a cada dia.

Mas a doutrina da Sola Scriptura não só engendrava o germe da divisão, mas também contradizia a própria Escritura. Isto, porque segundo ela, se uma doutrina é verdadeira, deve ser provada pela Escritura e exclusivamente através dela. Se isto é assim, também a Sola Scriptura deve ser provada deste modo, já que também é uma doutrina. No entanto, na própria Escritura há evidência suficiente para demonstrar que nem os Apóstolos nem a Igreja primitiva pensavam dessa maneira. Eles, claro, consideravam a Escritura como norma de fé, mas não consideravam que absolutamente todos os ensinamentos da Igreja devessem estar contidos nela, e muito menos que cada crente pudesse por conta própria definir aquilo que era doutrina de fé para a Igreja.

“Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se se escrevessem uma por uma, penso que nem todo o mundo bastaria para conter os livros que se escreveriam.” (João 21,25)

Evidentemente, muitas coisas fez e ensinou Jesus aos seus Apóstolos que não ficaram escritas na Bíblia, assim como muitas explicações que incluíam a correta interpretação das próprias Escrituras4. O Apóstolo Paulo manda examinar os ensinamentos que recebiam dos Profetas e reter o que é bom (1 Tessalonicenses 5,21), não rejeitar de maneira cega e irreflexiva tudo aquilo que acreditassem não encontrar na Bíblia.

Argumentos geralmente utilizados por protestantes para justificar a Sola Scriptura

Há uma grande quantidade de textos que os protestantes costumam citar para tentar provar a Sola Scriptura, nenhum, no entanto, o faz com sucesso. Vejamo-los:

“Jesus realizou na presença dos discípulos outras muitas sinais que não estão escritos neste livro. Estas foram escritas para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” (João 20,30-31)

O passagem anterior é utilizada com certa frequência para afirmar que, embora na Bíblia não esteja tudo, está tudo o necessário para a salvação.

Antes de tudo, é preciso notar que a passagem não fala da Bíblia, mas sim “deste livro” (o Evangelho de João), pelo que interpretar a passagem deste modo significaria deixar fora ensinamentos do resto da Escritura, tão importantes como o Pai Nosso (Mateus e Lucas), a infância de Jesus (Mateus e Lucas), a última ceia (Mateus, Marcos e Lucas), etc. Esta passagem não está indicando que apenas o que está ali nos serve para fazer tratados doutrinais sobre religião, nem para incluir a totalidade do ensinamento da doutrina cristã, mas apenas mostrar aos judeus que Jesus é o Messias como primeiro passo para a salvação.

Outra passagem muito utilizada para apoiar a Sola Scriptura é a seguinte:

“Tu, no entanto, persevera no que aprendeste e no que acreditaste, tendo presente de quem o aprendeste, e que desde criança conheces as Sagradas Escrituras, que podem dar-te a sabedoria que leva à salvação através da fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir e para educar na justiça; assim o homem de Deus se encontra perfeito e preparado para toda boa obra.” (2 Timóteo 3,14-17)

No entanto, não há forma de ler este texto de maneira que sirva para provar a Sola Scriptura. Dizer que algo é útil para algo não significa que apenas isso é útil para tal. Eu posso dizer que um martelo é uma ferramenta útil para um carpinteiro, e isso não significa que apenas possa servir-se dessa ferramenta para fazer o seu trabalho. Do mesmo modo, neste texto, o Apóstolo não está a dizer que apenas pode utilizar-se a Escritura para ensinar, argumentar, corrigir ou educar.

No início deste capítulo vimos vários textos que sim contradizem explicitamente a Sola Scriptura. O exemplo mais claro temos em 2 Tessalonicenses 2,15, onde Paulo manda a conservar as tradições que aprendemos deles, de viva voz ou por carta. Se Paulo tivesse pensado como pensam os defensores da Sola Scriptura, teria limitado-se a ordenar manter aquelas tradições recebidas por escrito, mas não o faz.

É importante também notar que São Paulo faz aqui referência às Escrituras que Timóteo tinha aprendido na sua infância. Uma boa parte do Novo Testamento não foi escrita durante a sua infância, e até algumas das Epístolas Católicas não tinham sido escritas quando escreveu isto. Ele refere-se, portanto, às Escrituras do Antigo Testamento, e se o argumento deste passagem provasse algo, provaria demasiado, a saber, que as Escrituras do Novo Testamento não eram necessárias para a regra de fé.

Um texto também citado pelos defensores da Sola Scriptura é este:

“Nisto, irmãos, pus-me como exemplo a mim e a Apolo, em ordem a vós; para que aprendais de nós aquilo de ‘Não ultrapassar o que está escrito’ e para que ninguém se engrandeça em favor de um contra outro.” (1 Coríntios 4,6)

Mas basta ler o contexto para entender que todo o passagem é uma exortação ética para evitar o orgulho, a arrogância e o favoritismo, mas em nenhum momento implica que apenas o ensinamento escrito seja uma espécie de padrão global sobre o qual reger-se exclusivamente, desprezando a Tradição ou ensinamento oral. Lembremos que se a interpretação deste passagem fosse como querem dar a entender, estaríamos novamente perante uma doutrina de apenas Antigo Testamento.

Argumentos menos sérios para apoiar a Sola Scriptura consistem em citar passagens dos Evangelhos onde Jesus, ao ser interrogado por seus inimigos sobre algum ponto da doutrina, responde focando a atenção em algum passagem do Antigo Testamento. Esta classe de versículos podem ser validamente usados para provar que o Antigo Testamento tem autoridade doutrinal; mas não podem ser usados para provar a Sola Scriptura.

Quando Jesus cita o Antigo Testamento para provar uma doutrina, mostra apenas que considerou que essa doutrina podia ser provada por alguma passagem em particular. É óbvio que não acreditava que toda a doutrina podia ser provada pelo Antigo Testamento e, por isso, não é surpreendente ver que Jesus também responde aos seus opositores apelando à sua própria autoridade ou a outras fontes fora da Escritura:

“Ele lhes disse: ‘Então, também vós estais sem inteligência? Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não pode contaminá-lo, pois não entra no seu coração, mas no ventre, e vai para o esgoto?’ – Assim declarava puros todos os alimentos –” (Marcos 7,18-19)

Este é um de tantos exemplos onde Jesus também ensina coisas com a sua própria autoridade, e coisas que não estavam escritas nem reveladas ainda. Outro texto bíblico utilizado pelos defensores da Sola Scriptura é este:

“Eu adverto a todo aquele que ouça as palavras proféticas deste livro: ‘Se alguém acrescentar algo sobre isso, Deus lançará sobre ele as pragas que estão descritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras deste livro profético, Deus lhe tirará a sua parte na árvore da Vida e na Cidade Santa, que estão descritas neste livro.’” (Apocalipse 22,18-19)

Este passagem é frequentemente interpretada por protestantes para dar a entender que não se deve acrescentar nada ao ensino da Bíblia. Mas este texto refere-se apenas a quem alterar ou adulterar o texto do livro do Apocalipse. Quando um autor bíblico quer fazer referência a um livro em particular, refere-se a ele como João faz aqui, ou como faz em João 20,30. É importante também reconhecer a diferença que a Bíblia faz do termo “Escritura” no singular5 para se referir a um livro em particular, ao termo “Escrituras” no plural6 para se referir à totalidade das Escrituras. Claro, o texto não pretende de modo algum negar à Igreja a potestade de definir verdades de fé produto da reflexão sobre o dado revelado.

Scott Hahn, antigo ministro evangélico, autor do livro “Roma, Doce Lar”, narra a seguinte anedota:

“Um aluno fez ao professor Scott Hahn uma pergunta embaraçosa que ele nunca tinha ouvido: ‘Onde ensina a Bíblia que a Escritura é a nossa única autoridade em matéria de fé?’ Scott deu uma resposta fraca que não deixou satisfeito o aluno e depois mudou de tema. Vejamos o que aconteceu depois:

‘Enquanto voltava para casa naquela noite, olhei as estrelas e murmurei: “Senhor, o que está acontecendo? Onde ensina a Escritura Sola Scriptura?”

Eram duas as colunas sobre as quais os protestantes baseavam a sua revolução contra Roma. Uma já tinha caído e a outra estava a balançar. Senti medo.

Estudei durante toda a semana sem chegar a nenhuma conclusão. Liguei até a vários amigos, mas não fiz nenhum progresso. Finalmente falei com dois dos melhores teólogos da América e também com alguns dos meus ex-professores. Todos aqueles a quem consultava se surpreendiam de que eu lhes fizesse essa pergunta e se sentiam ainda mais perturbados quando eu não ficava satisfeito com as suas respostas. A um professor eu disse:

‘Talvez sofra de amnésia, mas esqueci-me das simples razões pelas quais os protestantes acreditamos que a Bíblia é a nossa única autoridade.’

‘Scott, que pergunta tão tola.’

‘Pois dê-me uma resposta tola.’

‘Scott’, replicou ele, ‘na realidade tu não podes provar a doutrina da Sola Scriptura com a Escritura. A Bíblia não ensina explicitamente que ela seja a única autoridade para os cristãos. Em outras palavras, Scott, Sola Scriptura é em essência a crença histórica dos reformadores, frente à pretensão católica de que a autoridade está na Escritura e, além disso, na Igreja e na Tradição. Para nós, portanto, esta é apenas uma premissa teológica, o nosso ponto de partida, mais do que uma conclusão demonstrada. […]

‘Scott, olha o que ensina a Igreja católica. É óbvio que a Tradição está errada.’

‘Obviamente está errada’, concordei eu. ‘Mas onde se condena o conceito de Tradição? E, por outro lado, o que quis dizer Paulo quando pedia aos Tessalonicenses que se ajustassem à Tradição tanto escrita quanto oral?’ continuei pressionando. ‘Não é irônico? Nós insistimos em que os cristãos só podem acreditar no que a Bíblia ensina; mas a própria Bíblia não ensina que ela seja a nossa única autoridade.’”7

Conclusão

A Revelação do Evangelho, que recebemos do nosso Senhor Jesus Cristo, está contida tanto na Sagrada Escritura (palavra de Deus escrita) quanto na Sagrada Tradição (palavra de Deus falada). Ambas se complementam e não podem contradizer-se.

É necessário também assinalar que a Sagrada Tradição de que aqui falamos é aquela que vem dos Apóstolos e transmite o que estes receberam dos ensinamentos e do exemplo de Jesus e o que aprenderam pelo Espírito Santo. De fato, a primeira geração de cristãos ainda não tinha um Novo Testamento escrito, e o próprio Novo Testamento atesta o processo da Tradição viva. Por isso, é preciso distinguir dela as “tradições” teológicas, disciplinares, litúrgicas ou devocionais nascidas no decorrer do tempo nas Igrejas locais. Estas constituem formas particulares nas quais a grande Tradição recebe expressões adaptadas aos diversos lugares e às diversas épocas. Só à luz da grande Tradição aquelas podem ser mantidas, modificadas ou também abandonadas sob a guia do Magistério da Igreja.

O paradoxal do assunto é que aqueles que dizem reger-se só pela Bíblia são os que acabam obedecendo a tudo menos o que diz a Bíblia. A negação da presença de Cristo na Eucaristia, da Trindade, da imortalidade da alma, do sacramento da penitência, da maternidade divina de Maria e de muitas outras doutrinas firmemente atestadas pela Escritura são negadas precisamente por denominações que sustentam a Sola Scriptura como única norma de fé. Torna-se assim esta nada mais do que uma desculpa para interpretar a Bíblia por conta própria e fazer da fé uma espécie de cristianismo de cafeteria onde cada um acredita no que quer acreditar.

Notas de rodapé

  1. Em Mateus 15,1-9 também é narrado o mesmo acontecimento.
  2. A imprensa foi inventada em 1440 por Johannes Gutenberg.
  3. Neste contexto surgem as inquisições protestantes.
  4. Veja, por exemplo, Lucas 24,27, onde Jesus explica aos seus discípulos detalhadamente o cumprimento n’Ele das profecias do Antigo Testamento.
  5. Atos 1,16; 1 Coríntios 1,19.31; 2,9; Gálatas 3,8.10.13; 4,22.27.30; Hebreus 11,5; 2 Timóteo 3,16
  6. Atos 13,27; 17,2.11; 18,24.28; 1 Coríntios 15,3.4; 2 Pedro 3,16
  7. Traduzido de Scott y Kimberly Hahn, Roma, dulce hogar. Nuestro camino al catolicismo, Ediciones Rialp, Madrid 2001, p. 69-70.
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