A Tradição, Sola Scriptura e a Igreja Primitiva

“Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que aprendestes de nós, de viva voz ou por carta.” (2 Tessalonicenses 2,15)

“Eu vos louvo porque em todas as coisas vos lembrais de mim e conservais as tradições tal como vos transmiti.” (1 Coríntios 11,2)

“Irmãos, ordenamos-vos em nome do Senhor Jesus Cristo que vos afasteis de todo irmão que viva desordenadamente e não segundo a tradição que de nós recebestes.” (2 Tessalonicenses 3,6)

Um dos pilares do protestantismo é a doutrina da Sola Scriptura. Esta doutrina, que afirma que a Bíblia e somente a Bíblia, sob a livre interpretação de cada crente, é a única regra de fé e moral, tem sido a causadora das contínuas e exponenciais divisões protestantes, cada uma pretendendo reger-se exclusivamente pela Bíblia, mas sendo incapaz de chegar a um acordo sobre as doutrinas mais fundamentais da fé cristã.

A Igreja primitiva não era apenas escrituralista. Ela reconhecia a grande autoridade das Escrituras (máxima norma de fé), mas nunca pretendeu que tudo, absolutamente tudo referente à doutrina, tivesse que estar contido nas Escrituras, e muito menos que fosse um aval para não se submeter à autoridade da Igreja e às suas pronunciamentos dogmáticos.

No entanto, o protestantismo criou uma espécie de história alternativa quase mitológica onde afirmam que, de fato, a Igreja Primitiva era apenas escrituralista. Não é raro vê-los citar textos dos Padres onde falam da autoridade das Escrituras, acreditando que isso implica uma rejeição à Sagrada Tradição. Uma análise mais cuidadosa de seus escritos revelará que ocorre exatamente o contrário.

Algumas objeções protestantes

Um exemplo das objeções que os protestantes utilizam para argumentar que a Sola Scriptura era uma doutrina acreditada pela Igreja primitiva pode ser encontrado no site ChristianAnswers.net, no artigo “¿Qué creía la Iglesia primitiva acerca de la autoridad de las Sagradas Escrituras?”. Eles escrevem:

“O Concílio de Trento no século XVI declarou que a Revelação de Deus não estava contida somente nas Escrituras. Declarou que em parte está contida nas Sagradas Escrituras e em parte na Tradição; portanto, materialmente as Escrituras não eram suficientes.

Esta foi a postura da Igreja Católica Romana durante vários séculos após o Concílio de Trento.”1

Este site afirma que foi a partir do Concílio de Trento (século XVI) que a Igreja Católica tomou a postura de que nem tudo estava contido nas Escrituras. Bastaria dizer que quase um milênio antes, o segundo Concílio de Niceia havia decretado: “Se alguém rejeita toda tradição eclesiástica, escrita ou não escrita, seja anátema”. No entanto, é oportuno citar textos patrísticos de maior antiguidade para contrastar essas afirmações.

O artigo mais adiante afirma:

“O ponto de vista promovido pelo Concílio de Trento estava em direta contradição com o que acreditava e praticava a Igreja primitiva. A Igreja primitiva sempre sustentou o princípio da ‘Sola Scriptura’. Sustentava que todas as doutrinas deveriam ser submetidas à prova das Escrituras e, se a doutrina não passasse no exame, então deveria ser rejeitada.”

Neste comentário, fica clara a posição protestante que afirma que a Igreja primitiva professava e acreditava na Sola Scriptura.

O que acreditava a Igreja primitiva?

Inácio de Antioquia (? – 107 d.C.)

No seguinte texto, o célebre bispo de Antioquia, discípulo de Pedro e Paulo, rejeita a posição Solo Escriturista:

“Eu fiz, pois, a minha parte, como um homem amante da união. Mas onde há divisão e ira, ali não reside Deus. Agora, o Senhor perdoa a todos os homens quando se arrependem, se ao arrependerem-se regressam à unidade de Deus e ao concílio do bispo. Tenho fé na graça de Jesus Cristo, que vos libertará de toda atadura; e rogo-vos que não façais nada em espírito de facção, mas segundo o ensinamento de Cristo. Porque ouvi certas pessoas que diziam: Se não o encontro nas escrituras fundacionais (antigas), não acredito que esteja no Evangelho. E quando lhes disse: Está escrito, responderam-me: Isto é preciso provar. Mas, para mim, a minha escritura fundacional é Jesus Cristo, a carta inviolável de sua cruz, e sua morte, e sua ressurreição, e a fé por meio d’Ele; na qual desejo ser justificado por meio de vossas orações.”2

Pápias de Hierápolis (69 – 150 d.C.)

Importante o seu testemunho, já que, segundo Santo Ireneu, foi discípulo de São João e amigo de São Policarpo. Por ser considerado um dos Padres Apostólicos, os seus escritos são extremamente importantes para entender o cristianismo primitivo.

Surpreendentemente, São Pápias nos deixa um testemunho de não ser apenas Escriturista, mas de ter dado preferência à tradição oral:

“Junto com as interpretações, não hesitarei em acrescentar tudo o que aprendi e recordei cuidadosamente dos anciãos, porque estou seguro da veracidade disso. Ao contrário da maioria, não me deleitava naqueles que diziam muito, mas naqueles que ensinavam a verdade; não naqueles que recitavam os mandamentos de outros, mas naqueles que repetiam os mandamentos dados pelo Senhor. E sempre que alguém vinha que tinha sido um seguidor dos anciãos, perguntava-lhes sobre suas palavras: o que tinham dito André ou Pedro, ou Filipe, ou Tomé, ou Tiago, ou João, ou Mateus ou qualquer outro dos discípulos do Senhor, e o que Aristíon e o ancião João, discípulos do Senhor, ainda estavam dizendo. Porque não acreditava que a informação de livros pudesse ajudar-me tanto quanto a palavra de uma voz viva, sobrevivente.3

Ireneu de Lyon (130 – 202 d.C.)

Não menos importante é o testemunho de Santo Ireneu (bispo, mártir e discípulo de São Policarpo). Em seu célebre tratado Contra as Heresias, combate as heresias de seu tempo, especialmente as dos gnósticos, e encontra-se em seus escritos evidência suficiente para descartar que fosse partidário da Sola Scriptura.

A exposição sobre a importância da Tradição é tão clara em Santo Ireneu que os protestantes têm tentado diluí-la. Um exemplo temos no seguinte comentário do site já citado:

“Ambos mestres [referindo-se a Tertuliano e Santo Ireneu] fornecem o conteúdo doutrinário real da Tradição Apostólica que foi pregada nas Igrejas. A partir disso, podemos ver claramente que toda a doutrina era extraída das Escrituras. Não existe doutrina à qual eles se refiram como tradição apostólica que não estivesse bem fundamentada nas Escrituras.”

No entanto, um estudo cuidadoso das obras de Santo Ireneu derruba esta afirmação. Santo Ireneu explica como a Igreja combate os hereges por meio da Tradição custodiada através da sucessão apostólica. Mesmo possuindo as Escrituras – afirma ele –, não se pode nelas descobrir a verdade se não se conhece a Tradição. Ele também objeta que os hereges não podem provar que foram instituídos pelos Apóstolos e, ao rejeitar a Tradição, acabam contradizendo não somente a Tradição, mas também as Escrituras.

“Porque ao usar as Escrituras para argumentar, tornam-nas juízes das próprias Escrituras, acusando-as de não dizer as coisas corretamente ou de não ter autoridade, e de narrar as coisas de diversos modos: não se pode nelas descobrir a verdade se não se conhece a Tradição. Porque, segundo dizem, não se transmitiria (a verdade) por elas, mas de viva voz, pelo que Paulo teria dito: ‘Falamos de sabedoria entre os perfeitos, sabedoria que não é deste mundo’. E cada um deles pretende que essa sabedoria é a que ele encontrou, ou seja, uma ficção, de modo que a verdade se encontraria dignamente umas vezes em Valentim, outras em Marcião, outras em Cerinto, finalmente estaria em Basílides ou em quem disputa contra ele, que nada pôde dizer de salvífico. Pois cada um destes está tão pervertido que não se envergonha de pregar a si mesmo, corrompendo a Regra da Verdade.

Quando nós os atacamos com a Tradição que a Igreja guarda a partir dos Apóstolos pela sucessão dos presbíteros, colocam-se contra a Tradição dizendo que têm não só presbíteros, mas também Apóstolos mais sábios que encontraram a verdade sincera: porque os Apóstolos ‘teriam misturado o que pertence à Lei com as palavras do Salvador’; e não somente os Apóstolos, mas ‘o próprio Senhor teria pregado coisas que provinham ora do Demiurgo, ora do Intermediário, ora da Suma Potência’; ao passo que eles conheceriam ‘o mistério escondido’, indubitável, incontaminado e sincero: isso não é senão blasfemar contra o seu Criador. E terminam por não estar de acordo nem com a Tradição, nem com as Escrituras.”4

Santo Ireneu afirma a seguir que a unidade doutrinária que existe nas Igrejas não se deve apenas às Escrituras, mas à sucessão apostólica que garante a ortodoxia e a salvaguarda da Tradição sem “recortá-la”.

“Como dissemos antes, a Igreja recebeu esta pregação e esta fé e, estendida por toda a terra, cuida dela como se habitasse em uma única família. Conserva uma mesma fé, como se tivesse uma só alma e um só coração, e prega, ensina e transmite com uma mesma voz, como se tivesse apenas uma única boca. Certamente são diversas as línguas, conforme as diversas regiões, mas a força da Tradição é uma e a mesma. As igrejas da Germânia não acreditam de maneira diferente nem transmitem outra doutrina diferente da que pregam as da Ibéria ou dos Celtas, ou as do Oriente, assim como as do Egito ou Líbia, nem tampouco as igrejas constituídas no centro do mundo; assim como o sol, que é uma criatura de Deus, é um e o mesmo em todo o mundo, assim também a luz, que é a pregação da verdade, brilha em toda parte e ilumina todos os seres humanos que querem chegar ao conhecimento da verdade. E nem aquele que se destaca por sua eloquência entre os chefes da Igreja prega coisas diferentes destas – pois nenhum discípulo está acima de seu Mestre -, nem o mais fraco na palavra corta a Tradição: sendo uma e a mesma fé, nem o que muito pode explicar sobre ela a aumenta, nem o que menos pode a diminui.”5

Afirma de forma categórica que a verdade deve ser buscada na Igreja, já que os Apóstolos a depositaram nela e ela se mantém na Tradição apostólica.

“Sendo, pois, tantos os testemunhos, já não é preciso buscar em outros a verdade que é tão fácil receber da Igreja, já que os Apóstolos depositaram nela, como em um rico armazém, tudo o que se refere à verdade, a fim de que ‘quantos o queiram tirem dela a água da vida’. Esta é a entrada para a vida. ‘Todos os demais são ladrões e bandidos’. Por isso é necessário evitá-los, e, ao contrário, amar com todo afeto tudo o que pertence à Igreja e manter a Tradição da verdade.

Então, se há alguma divergência, ainda que em alguma coisa mínima, não seria conveniente voltar os olhos para as Igrejas mais antigas, nas quais os Apóstolos viveram, a fim de tomar delas a doutrina para resolver a questão, o que é mais claro e seguro? Mesmo que os Apóstolos não nos tivessem deixado seus escritos, não teria sido necessário seguir a ordem da Tradição que eles legaram àqueles a quem confiaram as Igrejas?6

O artigo protestante citado também escreve:

“Para Ireneu, com toda certeza, a doutrina da Igreja nunca é simples tradição. Pelo contrário, a noção de que possa existir alguma verdade transmitida exclusivamente de ‘viva voce’ (oralmente) corresponde à linha de pensamento dos gnósticos.”

Santo Ireneu não pretende limitar a transmissão do Evangelho à tradição oral, mas o fato é que também não a limita ao meio de transmissão escrita. O que o santo acreditava há quase dois milênios é exatamente o que um católico acredita hoje, ao não limitar a transmissão da Revelação nem à Escritura nem à Tradição. No entanto, é notável seu comentário onde pontua que os bárbaros, sem terem contado com meios de transmissão escritos, receberam o Evangelho “sem papel e tinta” e podem distinguir uma doutrina herética de uma ortodoxa.

“Muitos povos bárbaros dão seu assentimento a esta ordenação e acreditam em Cristo, sem papel nem tinta, mas em seu coração têm escrita a salvação pelo Espírito Santo. Eles guardam cuidadosamente a velha Tradição, acreditando em um só Deus Demiurgo do céu e da terra e de tudo quanto se encontra neles, e em Jesus Cristo, seu Filho, que, movido por seu eminentíssimo amor pela obra que criou, se submeteu a ser concebido por uma Virgem, unindo em si mesmo o homem e Deus. Sofreu sob Pôncio Pilatos, ressuscitou e foi recebido na luz. Voltará novamente em glória como Salvador de todos os que se salvam e como Juiz dos que são julgados, para enviar ao fogo eterno aqueles que desfiguram sua verdade e desprezam seu Pai e sua vinda.

Quantos sem letras acreditaram nesta fé são bárbaros segundo nosso modo de falar; mas quanto ao seu julgamento, costumes e modo de viver, são sapientíssimos pela fé e agradam a Deus, ao viver com toda justiça, castidade e sabedoria.

Se alguém se atrevesse a pregar-lhes o que os hereges inventaram, falando-lhes em sua própria língua, eles de imediato fechariam os ouvidos e fugiriam muito longe, pois nem sequer se atreveriam a ouvir a pregação blasfema. Deste modo, devido à antiga Tradição apostólica, nem sequer lhes vem à mente admitir raciocínios tão monstruosos. O fato é que, entre eles (os hereges), não se encontra nem igreja nem doutrina instituída.”7

Para Santo Ireneu, a prova de que esta Tradição foi conservada na Igreja é que eles podem enumerar aqueles que foram constituídos bispos e sucessores dos Apóstolos até eles.

Para todos aqueles que querem ver a verdade, a Tradição dos Apóstolos foi manifestada ao mundo em toda a Igreja, e podemos enumerar aqueles que na Igreja foram constituídos bispos e sucessores dos Apóstolos até nós, os quais nem ensinaram nem conheceram as coisas que aqueles deliram. Pois, se os Apóstolos tivessem conhecido desde cima ‘mistérios recônditos’, em oculto os teriam ensinado aos perfeitos, e sobretudo os teriam confiado àqueles a quem encarregavam as próprias Igrejas. Porque queriam que aqueles a quem deixavam como sucessores fossem em tudo ‘perfeitos e irrepreensíveis’, para lhes confiar o magistério em seu lugar: se agissem corretamente, resultaria em grande utilidade, mas, se tivessem caído, seria a maior calamidade.”8

E como em seu tratado considera demasiado longo enumerar a sucessão de todas as Igrejas, limita-se a enumerar a sucessão apostólica da Igreja de Roma, à qual chama de “a mais antiga”. Enumera assim a Igreja de Roma, fundada por Pedro e Paulo.

“Mas como seria demasiado longo enumerar as sucessões de todas as Igrejas neste volume, indicaremos sobretudo as das mais antigas e de todas conhecidas, a da Igreja fundada e constituída em Roma pelos dois gloriosíssimos Apóstolos Pedro e Paulo, a qual desde os Apóstolos conserva a Tradição e a fé anunciada aos homens pelos sucessores dos Apóstolos que chegam até nós. Assim confundimos a todos aqueles que de um modo ou de outro, ou por agradarem a si mesmos ou por vanglória ou por cegueira ou por uma falsa opinião, acumulam falsos conhecimentos. É necessário que qualquer Igreja esteja em harmonia com esta Igreja, cuja fundação é a mais garantida – refiro-me a todos os fiéis de qualquer lugar -, porque nela todos os que se encontram em todas as partes têm conservado a Tradição apostólica.9

Mais adiante, no quinto livro da mesma obra, referindo-se aos hereges, escreve:

“Porque todos estes vieram muito depois dos bispos, aos quais os Apóstolos confiaram as Igrejas; e isso o expusemos com todo cuidado no terceiro livro. Todos os hereges mencionados têm, portanto, necessidade, por sua cegueira acerca da verdade, de caminhar por outros e outros atalhos, e por isso as pegadas de sua doutrina se dispersam de modo discordante e inconsequente. Mas o caminho dos que pertencem à Igreja percorre o mundo inteiro, porque possui a firme Tradição que vem dos Apóstolos, e ao vê-la nos oferece uma e a mesma fé de todos…”10

Clemente de Alexandria (150 – 217 d.C.)

São Clemente enfatiza a importância de preservar a Tradição para que não se perca:

“Bem, eles preservavam a tradição da bendita doutrina derivada diretamente dos santos Apóstolos, Pedro, Tiago, João e Paulo, os filhos que a recebiam do pai (mas poucos foram como os pais), veio pela vontade de Deus até nós também para depositar aquelas ancestrais e apostólicas sementes. E bem sei que se alegrarão; não quero dizer encantados com este tributo, mas somente por causa da preservação da verdade, conforme a entregaram. Para um esboço como este, bem, penso, seja conforme a uma alma desejosa de preservar a bendita tradição de se perder.11

“Os dogmas ensinados pelas seitas notáveis serão aduzidos; e a estes se oporá tudo aquilo que deveria ser premissa de acordo com a mais profunda contemplação do conhecimento, o qual, como nós, procede do renomado e venerável cânone da tradição… De modo que possamos ter nossos ouvidos atentos para a recepção da tradição do verdadeiro conhecimento; o solo que é previamente limpo das espinhas e de cada erva daninha pelo semeador, em ordem à plantação da videira.”12

Hipólito de Roma (? – 235 d.C.)

São Hipólito enfatiza a importância de preservar a Tradição para se manter imune ao erro em sua obra intitulada A Tradição Apostólica:

“Agora passamos, da caridade que Deus testemunhou a todos os santos, ao essencial da tradição que convém às igrejas, a fim de que os que foram bem instruídos guardem a tradição que se manteve até o presente, segundo a exposição que dela fazemos, e ao compreendê-la sejam fortalecidos, por causa da queda ou do erro que se produziu recentemente por ignorância ou por causa dos ignorantes.”13

Na terceira parte desta mesma obra, aconselha:

“Aconselho aos sábios que observem isto. Porque, se todos prestarem ouvido à Tradição apostólica e a guardarem, nenhum herege os induzirá ao erro.”14

Orígenes (185 – 254 d.C.)

Orígenes mantém a mesma ideia que Santo Ireneu, na qual o ensino da Igreja tem sido salvaguardado pela sucessão apostólica. Afirma também a importância do que chama de “a tradição eclesial e apostólica” e categoricamente sustenta que não se deve aceitar como verdade mais que aquilo que em nada difira da tradição eclesiástica e apostólica:

“Ainda que haja muitos que creem que eles mesmos mantêm os ensinamentos de Cristo, há ainda alguns entre eles que pensam diferente de seus predecessores. O ensino da Igreja se impôs de fato com uma ordem na sucessão dos Apóstolos e dos remanescentes nas igrejas até o tempo atual. Não se deve aceitar como verdade mais que aquilo que em nada difira da tradição eclesiástica e apostólica.15

Não é de se estranhar que Orígenes, para apoiar certas doutrinas, não recorra apenas à Escritura, mas também à Tradição da Igreja. Assim, precisamente, defende o batismo de infantes, alegando que é uma tradição que receberam dos Apóstolos.

A Igreja recebeu dos Apóstolos o costume de administrar o batismo até mesmo às crianças. Pois aqueles a quem foram confiados os segredos dos mistérios divinos sabiam muito bem que todos carregam a mancha do pecado original, que deve ser lavado pela água e pelo espírito.”16

Não somente rejeita aquilo que difere da tradição eclesiástica e apostólica, mas afirma que aqueles que divergem desta e se tornam hereges não podem salvar-se. Proclama que fora da Igreja não há salvação “Extra hanc domum, id est Ecclesiam, nemo salvatur17. Assim, para o escritor eclesiástico, as doutrinas e leis que Cristo trouxe à humanidade somente se encontram na Igreja. Portanto, afirma que não pode haver fé fora desta Igreja. A fé dos hereges não é fides, mas uma credulitas arbitrária18.

Tertuliano (160 – 220 d.C.)

A visão pré-montanista de Tertuliano define claramente que os hereges não podem afirmar ter uma Igreja legítima se não puderem comprovar que sua origem descende das Igrejas fundadas pelos Apóstolos que conservam a verdadeira Tradição (sucessão apostólica).

Absurdo seria pensar que ele tivesse sido Solo Escriturista se inclusive negava aos hereges o apelo às Escrituras, já que estas pertenciam à Igreja:

“Por outro lado, se algumas [heresias] se atrevem a inserir-se na era apostólica para parecerem transmitidas pelos Apóstolos, porquanto existiram no tempo dos Apóstolos, nós podemos dizer: publiquem, então, as origens de suas igrejas, exibam a lista de seus bispos, de modo que, através da sucessão que decorre desde o princípio, aquele primeiro bispo tenha tido como garante e antecessor algum dos Apóstolos ou algum dos varões apostólicos, mas que tenha perseverado com os Apóstolos.

Com efeito, dessa maneira dão a conhecer suas origens as igrejas apostólicas: como a igreja dos esmírnicos conta que Policarpo foi posto por João, como a dos romanos que Clemente foi ordenado por Pedro. Do mesmo modo, certamente, também as outras igrejas mostram que descendentes da semente apostólica possuem, destinados ao episcopado pelos Apóstolos. Inventem algo semelhante os hereges. Pois, depois de tanta blasfêmia, o que é ilícito para eles?”19

Assim como outros Padres da Igreja e escritores eclesiásticos, Tertuliano não considerava válido que qualquer pessoa, baseando-se apenas nas Escrituras, tentasse impor sua interpretação pessoal sobre a interpretação da Igreja. Diante do fato de que os hereges costumam cobrir suas doutrinas com uma amálgama de textos bíblicos, ele os rejeita prontamente, escrevendo:

“Os hereges colocam as Escrituras à frente e, com semelhante audácia, imediatamente impressionam alguns. Mas, no próprio debate, certamente cansam os fortes, capturam os fracos, e deixam cheios de escrúpulos os de condição intermediária. Por isso, adotamos esta posição, a melhor: não admiti-los a nenhuma discussão sobre as Escrituras. Se essas são suas forças, para que possam usá-las, primeiro deve ser discernido a quem corresponde a posse das Escrituras, a fim de que não seja admitido àqueles a quem de nenhum modo corresponde. Poderia ter introduzido este argumento por desconfiança ou por gosto de abordar a questão de outra maneira, se não existissem razões. Em primeiro lugar, a de que nossa fé deve obediência ao Apóstolo, que proíbe empreender discussões, dar ouvidos a palavras novas, visitar o herege após uma correção…20

Outro ponto importante é que Tertuliano faz referência em numerosas ocasiões à Regra de fé (a qual era uma tradição oral mantida pela Igreja que resumia as principais doutrinas da fé cristã). Essa regra permitia identificar quando um herege distorcia as Escrituras para apoiar suas doutrinas heréticas.

“Se as coisas estão de forma que a verdade nos é atribuída a nós, a quantos caminhamos por essa regra que as igrejas transmitiram da parte dos Apóstolos, os Apóstolos da parte de Cristo, Cristo da parte de Deus, então permanece firme a razão de nossa resolução, que estabelece que não devem ser admitidos os hereges para empreender um desafio sobre as Escrituras, pois sem as Escrituras provamos que eles não têm nada a ver com elas.”21

Imediatamente critica a atitude dos hereges em relação ao seu uso das Escrituras, onde admitem algumas, ou não as admitem inteiras, mas as deformam para apoiar suas posturas.

“Esta heresia não admite certas Escrituras, e se admite algumas, não as admite íntegras, as muda, contudo, compondo interpretações contrárias à fé cristã. Tanto se opõe à verdade uma inteligência falsificadora quanto uma pena corruptora. Suas vãs conjecturas necessariamente se recusam a reconhecer aquelas passagens mediante as quais são refutadas; apoiam-se naquelas que retocaram fraudulentamente e nas que escolheram por razão de sua ambiguidade.”22

Para Tertuliano, conhecer o verdadeiro sentido da Escritura exige recorrer à escola de Cristo, ou seja, aos Apóstolos. Portanto, somente nas Igrejas apostólicas pode-se dar a correta interpretação das Escrituras.

“Assim, partindo do anterior, dirigimos esta prescrição: se o Senhor Jesus enviou os Apóstolos para pregar, não devem ser admitidos outros pregadores que os que Cristo instituiu, 2. porque ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o revelou, nem parece que o Filho se revelou a ninguém senão aos Apóstolos que enviou a pregar, entende-se, o que ele lhes havia revelado.

Ora, o que eles pregaram, isto é, o que Cristo lhes revelou, também aqui deduziremos esta prescrição: isto não deve ser provado de outro modo senão por meio das mesmas igrejas que os Apóstolos fundaram, pregando-lhes eles mesmos, seja de viva voz, como se diz, seja, depois, por meio de cartas.

Se assim estão as coisas, é certo, igualmente, que toda doutrina que concorde com a doutrina daquelas igrejas apostólicas, matrizes e fontes da fé, deve ser considerada verdadeira, pois sem dúvida mantém aquilo que as Igrejas receberam dos Apóstolos, os Apóstolos de Cristo, Cristo de Deus; mas toda doutrina que saiba a algo contrário à verdade das igrejas e dos Apóstolos de Cristo e de Deus deve ser prejulgada como proveniente da mentira.

Resta, pois, demonstrar se esta nossa doutrina, cuja regra formulamos acima, procede da tradição dos Apóstolos e, por conseguinte, as outras provêm da mentira.

Nós estamos em comunhão com as igrejas apostólicas, o que nenhuma doutrina contrária cumpre: isto é prova da verdade.”23

“Um tratado sobre esta matéria não será de todo inútil para instruir tanto os que ainda estão em um estágio de formação como os que, satisfeitos com sua fé simples, não investigam os fundamentos da tradição e, devido à sua ignorância, possuem uma fé que está à mercê de todas as tentações.”24

Cipriano de Cartago (200 – 258 d.C.)

São Cipriano também não era somente escriturista, pelo contrário, manda com toda diligência guardar a tradição divina e as práticas apostólicas:

Com toda diligência, é preciso guardar a tradição divina e as práticas apostólicas, e é preciso ater-se ao que se faz entre nós, que é o que se faz em quase todas as províncias do mundo…”25

Rejeita também que qualquer um ostente autoridade na Igreja sem ter sucessão apostólica, a que chama um desprezo à tradição evangélica, ao surgir por conta própria:

“A Igreja é uma só, e assim como ela é uma, não se pode estar ao mesmo tempo dentro e fora da Igreja. Porque se a Igreja está com a doutrina do (herege) Novaciano, então está contra o (Papa) Cornélio. Mas se a Igreja está com Cornélio, o qual sucedeu em seu ofício ao bispo (de Roma) Fabiano mediante uma ordenação legítima, e ao qual o Senhor, além do honor do sacerdócio, concedeu o honor do martírio, então Novaciano está fora da Igreja; nem sequer pode ser considerado como bispo, já que não sucedeu a ninguém, e desprezando a tradição evangélica e apostólica, surgiu por conta própria. Porque já sabemos que quem não foi ordenado na Igreja não pertence a ela de nenhum modo.”26

São Cipriano é frequentemente citado por protestantes devido ao seu conflito com o Papa Estevão, em que se obstinou em sua posição de rebaptizar hereges. Embora seu caso possa ser citado como um exemplo de um bispo que, em determinado momento, resistiu à autoridade do bispo de Roma, não há fundamento algum para insinuar que São Cipriano fosse somente escriturista. De fato, seu escrito sobre a unidade da Igreja (De Ecclesiae unitate), escrito aproximadamente em 251, combate o cisma de Novaciano e se mostra como um expositor excepcional da doutrina católica, de sua unidade, universalidade e exclusividade. Sua visão da Igreja como um organismo visível é radicalmente oposta à visão protestante de uma igreja invisível (tal como reconhecem até mesmo historiadores protestantes como Philip Schaff), onde cada um, sob o pretexto de reger-se apenas pela Bíblia, se separa da Igreja, produzindo cismas e divisões.

No mesmo escrito (c. 12), compara a Igreja com a Arca de Noé: “Fora da arca de Noé ninguém se salvou; o mesmo acontece com a Igreja” e alerta contra os hereges que, abandonando a Igreja, fundam seus próprios grupos religiosos: “Enganam-se a si mesmos interpretando erroneamente as palavras do Senhor: ‘Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles’. Não se pode entender esta passagem corretamente sem ter em conta seu contexto. Os que citam apenas as últimas palavras, omitindo o resto, corrompem o Evangelho”.

“O Senhor fala a São Pedro e lhe diz: «Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela…». E embora a todos os Apóstolos confie igual potestade depois de sua ressurreição e lhes diga: «Assim como me enviou o Pai, também eu vos envio. Recebei o Espírito Santo. Se a alguém perdoardes os pecados, ser-lhe-ão perdoados; se a alguém os retiverdes, ser-lhe-ão retidos», contudo, para manifestar a unidade, estabeleceu uma cátedra, e com sua autoridade dispôs que a origem dessa unidade começasse por um. Certamente que os demais Apóstolos eram o mesmo que Pedro, adornados com a mesma participação de honra e potestade, mas o princípio emana da unidade. A Pedro se dá o primado, para que se manifeste que é uma a Igreja de Cristo… Aquele que não tem essa unidade da Igreja acredita ter fé? Aquele que se opõe e resiste à Igreja, tem a confiança de se encontrar dentro da Igreja? O episcopado é um só, cuja parte é possuída por cada um in solidum. A Igreja também é uma, que se estende com sua prodigiosa fecundidade na multidão, à maneira que são muitos os raios do sol, e um só sol, e muitos os ramos de uma árvore, mas um só tronco fundado em firme raiz, e quando vários arroios procedem de uma mesma fonte, embora se aumente seu número com a abundância de água, conserva-se a unidade de sua origem. Separe um raio do corpo do sol: a unidade não admite a divisão da luz; corte um ramo da árvore: esse ramo não poderá vegetar; interrompa a comunicação do arroio com a fonte e ele secará. Assim também a Igreja, iluminada com a luz do Senhor, estende seus raios por todo o orbe; mas uma só é a luz que se derrama por todas as partes, sem se separar a unidade do corpo; com sua fecundidade e vigor estende seus ramos por toda a terra, dilata largamente suas abundantes correntes, mas uma é a cabeça, uma a origem e uma a mãe, abundante em resultados de fecundidade. De seu parto nascemos, com seu leite nos alimentamos e com seu espírito somos animados.”27

Eusébio de Cesareia (263 – 340 d.C.)

Reconhecido como o maior historiador da Igreja primitiva, escreve:

“Entre os que floresceram na igreja neste tempo estavam Hegésipo, a quem vimos antes. O bispo Dionísio de Corinto, o bispo Pinito de Creta, Filipe, Apolinário, Melitão, Musano, Modesto e, sobretudo, Irineu. A sua ortodoxia e fervor pela tradição apostólica chegaram até nós em forma escrita.”28

Eusébio nos dá um dado significativo quando narra o conflito que houve entre o Papa São Estevão e São Cipriano de Cartago. O Papa se opunha ao rebaptismo dos hereges, enquanto São Cipriano os fazia rebaptizar. O Papa escreve uma carta onde diz “que não se inove nada que tenha sido transmitido”. É interessante este evento porque o próprio Eusébio entende que São Cipriano introduzia uma novidade contrária à Tradição.

“Mas Cipriano, pastor da sede de Cartago, foi o primeiro em seu tempo a insistir que fossem readmitidos apenas após a sua purificação através do batismo. Em contrapartida, Estevão considerava errado fazer qualquer inovação contrária à tradição estabelecida desde o princípio, e ficou muito irritado.”29

Atanásio de Alexandria (295 – 373 d.C.)

A seguinte carta não é trabalho exclusivo de Santo Atanásio, mas de noventa bispos do Egito e da Líbia reunidos em um sínodo em Alexandria em 369, o que a torna mais relevante como testemunho de quão importantes e autoritativos eram os concílios ecumênicos para a Igreja:

 “Mas as palavras do Senhor que vieram através do concílio ecumênico de Niceia permanecerão para sempre.”30

Na sua carta em defesa dos decretos do concílio de Niceia (De Decretis Nicaenae synodi), pede aos arianos que provem de onde tiraram suas opiniões (mestre ou tradição) acerca da criação do Verbo, o que seria absurdo se ele não desse crédito à importância da Tradição. O mesmo se observa quando afirma que os decretos de Niceia mantêm a mesma doutrina que eles receberam por Tradição.

“Deixem-nos dizer de que mestre ou de que tradição derivaram essas noções referentes ao Salvador.”31

“De fato, o que nossos Pais entregaram, isso é a doutrina verdadeira, e isso é verdadeiramente o símbolo dos doutores, que confessam o mesmo uns com os outros, e nem divergem entre si nem de seus pais; enquanto eles que não têm essa característica são chamados não verdadeiros doutores, mas ímpios.”32

“Mas os sectários, que caíram fora do ensino da Igreja, naufragaram no que se refere à sua fé.”33

“desde as origens, a autêntica tradição, doutrina e fé da Igreja Católica, que o Senhor deu, os Apóstolos pregaram e os pais conservaram.”34

“Mas depois dele e com ele estão todos os inventores de ímpias heresias, que na verdade se referem às Escrituras, mas não mantêm as opiniões como os santos ditaram, e recebendo-as como a tradição de homens, se equivocam, porque não as conhecem corretamente, nem o seu poder.”35

A carta a Epíteto (Epistula ad Epictetum episcopum Corinthi) teve uma grande reputação e foi muito citada nas controvérsias cristológicas, a ponto de o Concílio de Calcedônia a adotar como a melhor expressão de suas convicções36. Nela, embora Santo Atanásio estivesse convencido de que a doutrina Trinitária tinha fundamento nas Escrituras, replica que para refutar os hereges basta mostrar-lhes que o que professam é distinto do ensinamento da Igreja e dos pais.

“É suficiente apenas responder a esse tipo de coisas da seguinte maneira: estamos contentes com o fato de que esta não é a doutrina da Igreja Católica, nem aquela que os pais mantêm. Mas, para evitar que os inventores de maldades façam do nosso silêncio total um pretexto para a desfaçatez, será bom mencionar alguns pontos da Sagrada Escritura.”37

Agostinho de Hipona (354 – 430 d.C.)

Os protestantes costumam apresentar Santo Agostinho como um defensor da Sola Scriptura, porém as evidências apontam para o contrário.

“Não acreditaria no Evangelho, se a isso não me movesse a autoridade da Igreja católica.”38

O texto que cito a seguir é particularmente revelador, porque Santo Agostinho ensina como na Igreja se deve guardar tudo o que provém da Tradição, mesmo que não esteja escrito. Isso ocorreu mais de um milênio antes de Trento, no qual -segundo o artigo protestante citado- foi quando isso começou a ser professado na Igreja Católica.

“…Tudo o que observamos por tradição, mesmo que não esteja escrito; tudo o que a Igreja observa em todo o mundo, subentende-se que é guardado por recomendação ou preceito dos Apóstolos ou dos concílios plenários, cuja autoridade é indiscutível na Igreja. Por exemplo, a paixão do Senhor, sua ressurreição, ascensão aos céus e vinda do Espírito Santo desde o céu, se celebram a cada ano. O mesmo diremos de qualquer outra prática semelhante que se observe em toda a Igreja universal.”39

Sobre o batismo, Contra os donatistas, escreve comentando a posição do Papa em relação ao rebatismo dos conversos:

“Os Apóstolos, de facto, não deram instruções sobre este ponto, mas o costume que se opõe a Cipriano pode supor-se teve a sua origem na tradição apostólica, assim como há muitas coisas que são observadas por toda a Igreja, e, por isso, são firmemente sustentadas por terem sido impostas pelos Apóstolos, e que não são mencionadas nos seus escritos.”40

Para Santo Agostinho, a autoridade dos concílios e do bispo de Roma é indiscutível. Foi ele quem, na controvérsia pelagiana, deu a causa por finalizada quando o Papa Inocêncio emitiu um édito aprovando os concílios de Cartago e Milevis.

“Aqueles que não estão na comunhão católica e se gloriam, no entanto, do nome cristão, são obrigados a opor-se aos crentes; ousam enganar os indoutos como se se valessem da razão, sendo assim que o Senhor veio cabalmente trazer esta medicina da fé imposta aos povos. Mas os hereges são obrigados a fazer isso, como eu disse, porque sentem que seriam repudiados com desdém se comparassem a sua autoridade com a da Igreja Católica.

Tentam, portanto, superar a autoridade inabalável da Igreja com o nome e a promessa da razão. Esta temeridade é comum a todos os hereges. Mas aquele imperador clementíssimo da fé dotou-nos também a nós do magnífico aparato da razão invicta, valendo-se de varões seletos e piedosos, doutos e verdadeiramente espirituais. E ao mesmo tempo fortaleceu a Igreja com a cidadela da autoridade, valendo-se de concílios famosos de todos os povos e gentes e das mesmas sedes apostólicas.”41

En uma epístola que escreve contra os maniqueus (Contra epistolam Manichaei quam vocant fundamenti liber I), rejeita as objeções que estes faziam com base na Escritura para atacar a Igreja Católica. Responde que ele acredita nas Escrituras precisamente por sua autoridade e que, se eles inclusive conseguissem, por meio das Escrituras, encontrar um testemunho contra ela, o que conseguiriam seria fazer com que deixasse de acreditar tanto na Igreja Católica quanto nas Escrituras.

“Na Igreja Católica, sem falar da sabedoria mais pura, ao conhecimento da qual poucos homens espirituais chegam nesta vida, de maneira que a saibam, da maneira mais extensa, efetivamente, porque são homens, ainda com incerteza (já que o resto da multidão de pessoas deriva toda a sua segurança não da acuidade do intelecto, mas da simplicidade da fé), – Mesmo prescindindo da sincera e genuína sabedoria…, que na vossa opinião não se encontra na Igreja Católica, muitas outras razões me mantêm no seu seio: o consentimento dos povos e das gentes; a autoridade, erigida com milagres, nutrida com a esperança, aumentada com a caridade, confirmada pela antiguidade; a sucessão dos bispos desde a própria sede do Apóstolo Pedro, a quem o Senhor confiou, após a ressurreição, apascentar as suas ovelhas, até o episcopado de hoje; e, enfim, o próprio apelativo de Católica, que sem razão só a Igreja alcançou… Esses vínculos do nome cristão – tantos, tão grandes e dulcíssimos – mantêm o crente no seio da Igreja Católica, apesar de a verdade, devido à torpeza da nossa mente e indignidade da nossa vida, ainda não se mostrar…

… Se tu encontrares uma pessoa que não acredita ainda nas Escrituras, como lhe responderias se esta te disser que não acredita? Da minha parte, não acreditarei nas Escrituras a menos que a autoridade da Igreja Católica me mova a isso. Assim, quando aqueles em cuja autoridade aceitei acreditar nas Escrituras me dizem que não acredite em Maniqueu, o que mais posso fazer senão aceitá-lo? Escolhe. Se tu dizes, acredita nos Católicos: o seu conselho para mim é que não deposite a minha fé no que tu dizes; assim, acreditando neles, sou prevenido de acreditar em ti; – Se tu dizes, não acredites nos Católicos: tu não podes com retidão utilizar as Escrituras para trazer-me à fé em Maniqueu; porque foi sob o mandato dos Católicos que acreditei nas Escrituras. – Novamente, se tu me dizes, estavas correto ao acreditar nos Católicos quando eles te disseram que acreditasses nas Escrituras, mas estavas errado ao acreditar nas suas vituperações contra Maniqueu: julgas-me tão tolo a ponto de acreditar no que te convém e não te convém, sem nenhuma razão? Assim, é por isso mais justo e mais seguro, tendo posto a princípio a minha fé nos Católicos, não ir a ti, até que, em vez de insistires que te acredite, me faças entender algo da maneira mais clara e aberta. Para convencer-me, então, tens que pôr de lado as Escrituras. Se manténs as Escrituras, eu me apegarei àqueles que me mandaram acreditar nas Escrituras; e, em obediência a eles, não acreditarei em ti de forma alguma. Mas, se por acaso tens sucesso em encontrar nas Escrituras um testemunho irrefutável do apostolado de Maniqueu, debilitarias a minha consideração pela autoridade dos Católicos que me dizem que não acredite em ti; e o efeito disso será que eu não acreditarei mais nas Escrituras também, porque foi através dos Católicos que recebi a minha fé nelas; e assim o que quer que tragas das Escrituras não terá mais peso para comigo. Assim, se não tens uma prova clara do apostolado de Maniqueu encontrada nas Escrituras, eu acreditarei nos Católicos em vez de em ti. Mas, se encontrares, de alguma forma, um trecho claramente a favor de Maniqueu, não acreditarei nem neles nem em ti: nem neles, porque mentiram-me a respeito de Maniqueu; nem em ti, porque me estás citando essas Escrituras nas quais acreditei sob a autoridade “daqueles mentirosos”. Mas longe de que eu não vá acreditar nas Escrituras; acreditando nelas, não encontro nada nelas que me faça acreditar em ti.”42

João Crisóstomo (347 – 407 d.C.)

Deixa-nos uma excelente evidência de como a Igreja, há mais de 1600 anos, interpretava 2 Tessalonicenses 2,15 exatamente como nós, católicos, fazemos hoje (como uma rejeição bíblica à doutrina da Sola Scriptura):

“Portanto, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa. Disto está claro que não deixaram tudo escrito, mas há muito também que não foi escrito. Assim como o que foi escrito, o que não foi escrito é também digno de crença. Assim, consideremos a tradição da igreja igualmente digna de fé. É uma tradição? Não busquemos mais.”43

Basílio, o Grande (330 – 379 d.C.)

Afirma que os dogmas e mensagens preservados na Igreja foram recebidos tanto por meios orais como por meios escritos, e rejeita a ideia de abandonar os costumes não escritos:

“Vamos investigar quais são as nossas concepções comuns em relação ao Espírito, assim como as que foram recolhidas por nós a partir da Sagrada Escritura em relação àquelas que recebemos da tradição não escrita dos Padres.”44

“O objetivo do ataque é a fé. O único objetivo de toda a banda de opositores e inimigos da «sã doutrina» é abalar os fundamentos da fé em Cristo, derrubando a tradição apostólica e destruindo-a totalmente. Assim como devedores, – naturalmente, devedores de boa-fé. — Eles pedem uma prova escrita e rejeitam como inútil a tradição não escrita dos Padres.”45

“Num só Espírito, diz ele, «fomos todos batizados num só corpo». E em harmonia com isto estão as passagens: «Serão batizados no Espírito Santo» e «Ele os batizará com o Espírito Santo». Mas ninguém justificaria chamar esse batismo de um batismo perfeito onde apenas o nome do Espírito Santo foi invocado. Porque a tradição que nos foi entregue por graça deve permanecer para sempre inviolável.”46

“Dos dogmas e das mensagens preservadas na Igreja, alguns os temos da doutrina escrita e outros recebemos da tradição dos Apóstolos… No que se refere à piedade, ambos têm a mesma força. Ninguém contradirá nenhum destes, ninguém, que seja inclusive moderadamente versado em matérias eclesiásticas. De fato, se rejeitássemos costumes não escritos como se não tivessem grande autoridade, poderíamos danificar involuntariamente o Evangelho na sua vitalidade; ou pior, poderíamos reduzir a mensagem a um mero termo.”47

“Faltar-me-ia tempo se tentasse enumerar os mistérios não escritos da Igreja… Enquanto as tradições não escritas são muitas, e sua incidência no mistério da Piedade é tão importante…”48

“Em resposta à objeção de que a doxologia na forma «com o Espírito» não tem autoridade escrita, sustentamos que se não há outro exemplo daquilo que não é escrito, então este não deve ser recebido. Mas se o maior número dos nossos mistérios são admitidos na nossa Constituição, sem mandato escrito, então, na companhia desses muitos outros, vamos receber este. Porque eu mantenho respeito também pelas tradições não escritas. «Eu vos louvo», diz [Paulo], «porque em todas as coisas vos lembrais de mim e conservais as ordenanças tal como vos as transmiti» e «Mantende-vos firmes e guardai as tradições que aprendestes de nós, por palavra ou por epístola». Uma destas tradições é a prática que temos diante de nós, que ordenou que desde o princípio, firmemente enraizada nas igrejas, entregue aos seus sucessores… Se, como num Tribunal de Direito, perdêssemos as provas documentais, somos capazes de trazer diante de vocês um grande número de testemunhas.”49

Epifânio de Salamina (315 – 403 d.C.)

“É necessário também fazer uso da Tradição, porque nem tudo se pode conseguir nas Sagradas Escrituras. Os santos Apóstolos deixaram algumas coisas nas Escrituras, outras coisas na Tradição.”50

Gregório de Nisa (331 – 394 d.C.)

É frequentemente citado por protestantes como um fiel defensor da Sola Scriptura, devido a textos como este:

“Não nos é permitido afirmar o que nos apraz. A Sagrada Escritura é, para nós, a norma e a medida de todos os dogmas. Aprovamos somente aquilo que podemos harmonizar com a intenção destes escritos.”51

São Gregório, nestes textos, fala da suficiência material das Escrituras. (Diferente da posição protestante, onde as Escrituras são o princípio material e o juízo privado seu princípio formal). Uma análise completa do pensamento do santo revela que ele não pretende excluir a Tradição apostólica, daí que sustente que é necessário receber como verdade aquilo que se recebe “entregado pela Igreja com a proteção de toda a Escritura.”

São Cirilo também proclama a Igreja como coluna e fundamento da verdade, não é lícito para ele a separação de cristãos em seitas, e chama a qualquer grupo que se separe da Igreja de “abominável.”

“Se nosso raciocínio não está à altura do problema, devemos manter sempre firme e imóvel a tradição que recebemos dos Padres por sucessão.”52

Cirílo de Jerusalém (315 – 386 d.C.)

Es frequentemente citado pelos protestantes como exemplo de um padre da Igreja que era somente escriturista, pelos seguintes textos:

“Tenha sempre este sinal em mente, pois a ela está sendo anunciado tudo isso de modo sumário; mas se Deus permitir, explicaremos tudo mais amplamente, segundo nossas forças, demonstrando-o segundo as Escrituras. Pois, acerca dos divinos e santos mistérios da fé, não se deve transmitir nada sem as Sagradas Escrituras, nem devem ser aduzidas de modo temerário coisas simplesmente prováveis e apoiadas em argumentos construídos com palavras artificiosas. E não creias, pois, que vou proceder deste modo, mas provando pelas Escrituras o que te anuncio. Pois esta fé, à qual devemos nossa salvação, não recebe sua força dos comentários e das disputas, mas da demonstração por meio da Sagrada Escritura.”53

“Ao aprender e confessar a fé, deves abraçar e guardar como tal somente a que agora te é entregue pela Igreja com a proteção de toda a Escritura. Mas, visto que nem todos podem ler as Escrituras — alguns são impedidos pela falta de habilidade e outros pelas suas ocupações —, para que a alma não pereça por ignorância, compendiamos em poucos versículos todo o dogma da fé. Quero que todos vós o recordeis com essas mesmas palavras e que o reciteis em vosso interior com todo interesse, mas não o escrevendo em tábuas, e sim gravando-o de memória no vosso coração. E quando pensardes nisso, meditai-o com cuidado, para que em nenhuma parte nenhum dos catecúmenos escute o que vos foi entregue.”54

“Mas o nome de ‘Igreja’ acomoda-se a realidades diversas, de modo que também da multidão que se encontrava no teatro dos efésios está escrito: ‘Dito isto, dissolveu-se a assembleia’ (Atos 19,40). Também alguém disse intencionalmente que a ‘assembleia de malfeitores’ (Salmo 26,5) é o conjunto dos hereges: refiro-me aos marcionitas, maniqueus e aos restantes.

Portanto, a fé te mostra muito cautelosamente que isto é o que deves sustentar: ‘E na Igreja, uma santa, católica’, para que, fugindo desses grupos abomináveis, te adiras sempre à santa Igreja católica, na qual renasceste. E se alguma vez viajares por diversas cidades, não perguntes simplesmente onde está o ‘Kyriakón’, pois também as restantes seitas e heresias dos ímpios se esforçam em fazer suas tocas parecerem apresentáveis com o nome de ‘Kyriakón’, nem simplesmente onde está a igreja, mas onde há uma igreja católica, pois este é o nome próprio desta santa Igreja, mãe de todos nós. Ela é certamente a esposa do nosso Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus (pois está escrito: ‘como Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela’, etc., Efésios 5,25 ss) e oferece uma imagem e uma imitação da ‘Jerusalém de cima’, que ‘é livre; essa é nossa mãe’ (Gálatas 4,26). Tendo sido anteriormente estéril, agora é mãe de uma numerosa prole (cf. Gálatas 4,27 e Isaías 54,1).

Extendida sem fronteiras pela paciência dos mártires

Repudiada a primeira, na segunda, ou seja, na Igreja Católica, como diz Paulo, Deus pôs alguns como Apóstolos; em segundo lugar como Profetas; em terceiro lugar como mestres; depois os milagres; depois o dom das curas, de assistência, de governo, diversidade de línguas (1 Coríntios 12,28) e toda espécie de qualquer virtude. Refiro-me à sabedoria e à inteligência, à temperança e à justiça, à misericórdia e à humanidade, e à paciência invencível nas perseguições. Foi esta, “mediante as armas da justiça, as da direita e as da esquerda, em glória e ignomínia” (2 Coríntios 6,7-8), que redimiu, em primeiro lugar, os santos mártires nas suas perseguições e angústias com coroas diversas, unidas entre si pelas numerosas flores do sofrimento. Agora, em tempos de paz, esse sofrimento recebe, por graça de Deus e pela mão de reis e homens conspícuos pela grandeza da sua dignidade, as honras que lhe devem até os homens de qualquer linhagem e aparência. E enquanto tem fronteiras determinadas o poder dos soberanos de povos distribuídos por lugares diversos, só a santa Igreja Católica possui um poder sem fronteiras em todo o mundo. Pois, como está escrito, Deus pôs em seu termo a paz (Salmo 147,14). Mas se sobre este assunto quisesse dizer tudo, precisaria de um discurso de muitas horas.”55

Para São Cirilo, todas as doutrinas católicas estavam contidas na Escritura, tanto de maneira explícita quanto implícita (novamente se recorda que a suficiência material das Escrituras é distinta da doutrina da Sola Scriptura). Foi um grande defensor da doutrina Trinitária, acreditava que pelo batismo nos tornamos participantes do sacrifício de Cristo, sua morte e sua ressurreição; o batismo perdoa os pecados e é necessário para a salvação. Também explica de forma diáfana a transubstanciação: “O que parece pão não é pão, embora assim seja sentido pelo gosto, mas o corpo de Cristo, e o que parece vinho não é vinho, embora o gosto assim o queira, mas o sangue de Cristo56. Antecipando-se com mais de um milênio à heresia protestante que nega o caráter sacrificial da Eucaristia, ele chama a Eucaristia de sacrifício espiritual e incruento, o qual é oferecido por todos os que estão em necessidade, incluindo os defuntos57.

Outras objeções protestantes

Outro dos argumentos que os protestantes utilizam para defender a doutrina da Sola Scriptura, retirei do mesmo artigo58:

“É verdade que a Igreja primitiva também sustentava o conceito de tradição em referência ao costume e às práticas eclesiásticas. Acreditava-se, frequentemente, que tais práticas haviam sido herdadas dos Apóstolos, ainda que não pudessem ser necessariamente validadas pelas Escrituras. Esta prática, no entanto, não envolvia a doutrina da fé e frequentemente era contraditória entre os diferentes segmentos da Igreja.

Um exemplo disso encontra-se no início do segundo século, na controvérsia sobre quando celebrar a Ressurreição. Algumas igrejas do Oriente a celebravam em dias diferentes daquelas do Ocidente, mas cada uma assegurava que sua prática particular havia sido herdada diretamente dos Apóstolos. Na realidade, isso criou um conflito entre o bispo de Roma, que exigia que os bispos do Oriente se submetessem à prática do Ocidente. Eles recusaram, acreditando firmemente que estavam cumprindo com a tradição apostólica.”

No entanto, uma análise da história e dos textos patrísticos demonstra que não é verdade que a Tradição sustentada pela Igreja primitiva se limitava exclusivamente a práticas eclesiásticas. Papias não faz exceção quanto ao que aprendeu por meio dos ensinamentos de viva voz. São Irineu fala sobre como não se pode encontrar a verdade nas Escrituras se se desconhece a Tradição e como utilizavam esta Tradição para atacar as heresias (não seria sensato supor que se podia atacar os ensinamentos dos hereges com meros costumes e práticas eclesiásticas). Orígenes fala do ensinamento da Igreja transmitido pelos Apóstolos através da tradição apostólica (aqui também não parece estar limitado a questões de mera disciplina eclesiástica). São Basílio, o Grande, fala dos “dogmas e das mensagens preservadas na Igreja” através da Tradição. Clemente de Alexandria fala desta como a bendita doutrina derivada diretamente dos Apóstolos, e Santo Agostinho inclui na Tradição o exposto pelos concílios.

Por outro lado, o conflito mencionado (a controvérsia pascal) evidencia quão firmemente a Igreja primitiva valorizava a Tradição, ao ponto de quase se produzir um cisma só por mantê-la. A este respeito, escreve o historiador José Orlandis:

“No século II, a Igreja romana viu-se confrontada com duas questões de ordem muito distinta, mas que cada uma teve, à sua maneira, uma incidência na sua vida: a controvérsia pascal e as tentativas de infiltração das doutrinas gnósticas.

A controvérsia pascal surgiu como consequência das diferenças existentes entre a Igreja Romana – à qual seguiam quase todas as demais – e as igrejas asiáticas a propósito do dia da celebração da Páscoa.

Pretendiam essas igrejas que a celebração tivesse lugar no dia 14 do mês de Nisã, qualquer que fosse o dia da semana em que caísse, enquanto que a prática romana, instituída oficialmente pelo Papa Pio I, era que a Páscoa fosse comemorada sempre num domingo, o domingo seguinte àquela data de 14 de Nisã. Embora possa parecer outra coisa, não se tratava de uma questão trivial, pois a data da Páscoa condicionava todo o ciclo litúrgico e era um sinal tangível de comunhão entre todas as igrejas.

Para tratar de resolver esta questão, e apesar da sua avançada idade de mais de 80 anos, no tempo do Papa Aniceto (155-166) deslocou-se a Roma o venerável bispo de Esmirna (São Policarpo), que pouco depois morreria mártir. Apesar dos esforços de ambas as partes, foi impossível chegar a um acordo. Policarpo não podia renunciar à tradição pascal das igrejas da Ásia, uma tradição de raiz judeo-cristã, que ele aprendeu do próprio Apóstolo João Evangelista, de quem foi discípulo direto; os dois bispos, perante a impossibilidade de alcançar a unidade litúrgica, quiseram deixar constância da manutenção da paz entre eles, e como sinal visível de comunhão, o Papa Aniceto fez a Policarpo a honra de convidá-lo a celebrar a Eucaristia na sua própria igreja.

O problema agravou-se no final do século II, como consequência da introdução na liturgia das igrejas asiáticas de algumas observâncias de sabor judaizante, como o rito do cordeiro pascal. À vista do rumo que tomava a questão, o Papa Vítor I (189-198), num ato significativo de exercício da potestade primacial, convocou a reunião de sínodos provinciais nas diversas igrejas, e todos eles, salvo os da Ásia, mostraram-se de acordo com o uso romano. Os asiáticos reafirmaram a sua postura e, em nome deles, o bispo Policrates de Éfeso escreveu uma veemente missiva ao Papa. Vítor I reagiu com dureza e ameaçou os asiáticos com sanções canônicas, incluindo a excomunhão.

A ruptura não chegou a consumar-se, e para isso contribuiu a intervenção apaziguadora de Irineu de Lyon, que, após reiterar a sua adesão à observância romana, pediu ao Papa que não rompesse a comunhão com aquelas igrejas, pelo apego que mostravam às suas antigas tradições, sendo como era uma mesma a fé de todos. Vítor I acolheu os pedidos de Irineu e, com o tempo, as igrejas asiáticas acabaram por aceitar a disciplina romana….”59

Es indubitável o grande apego que esses primeiros cristãos tinham por manter a Tradição que haviam recebido dos Apóstolos, na qual, inclusive em uma questão litúrgica e não dogmática, esteve a ponto de produzir-se um cisma.

A Sola Scriptura não tem fundamento bíblico nem patrístico. Se a Igreja primitiva tivesse pensado como pensa o protestantismo hoje em dia, sofreria as consequências que eles padecem e teria mergulhado em uma onda imparável de divisões, onde cada um pretende impor sua interpretação das Escrituras separado da Tradição. O simples fato de que os protestantes saibam quais são os livros da Bíblia deve-se à Tradição, já que em nenhum livro da Escritura se enumeram os livros da mesma. Os protestantes também ignoram o fato de que os primeiros cristãos não tinham um cânon do Novo Testamento completamente definido. O fragmento de Muratori, que é o catálogo mais antigo dos livros do Novo Testamento, não incluía todos os livros do cânon que conhecemos hoje. Assim, embora os livros que pertencem hoje ao cânon do Novo Testamento tenham sido escritos no primeiro século, o cânon como tal veio a ser definido permanentemente no final do século IV.

Notas de rodapé

  1. A citação original escreve “tradição” com minúscula, e o mesmo faz com “igreja católica”. Esta é uma prática comum em alguns sites protestantes. Tomei a liberdade de corrigir isso na citação reproduzida.
  2. Inácio de Antioquia, Carta aos Filadélfios 8
    B. Lightfoot, Los Padres Apostólicos, Editorial CLIE
  3. Pápias, fragmentos em Eusébio, História eclesiástica III,39
    Paul L. Maier, Eusébio, História da Igreja, Editorial Portavoz, Michigan 1999, p. 126
  4. Ireneu de Lyon, Contra as Heresias III,2,1-2
    Carlos Ignacio González, S.J., Ireneu de Lyon, Contra os Hereges, Conferência do Episcopado Mexicano, México 2000 (Todas as citações desta obra estão tomadas daqui)
  5. Ireneu de Lyon, Contra as Heresias I,10,2
  6. Ireneu de Lyon, Contra as Heresias III,4,1
  7. Ireneu de Lyon, Contra as Heresias III,4,2
  8. Ireneu de Lyon, Contra as Heresias III,3,1
  9. Ireneu de Lyon, Contra as Heresias III,3,2
  10. Ireneu de Lyon, Contra as Heresias V,20,1
  11. Clemente de Alexandria, Stromata I,1
    New Advent Encyclopedia, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/02101.htm
  12. Clemente de Alexandria, Stromata I,1
    Ibid.
  13. Hipólito, A Tradição Apostólica, I,1
    Johannes Quasten, Patrologia I, Biblioteca de Autores Cristianos 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 492
  14. Hipólito, A Tradição Apostólica, III,38
    Ibid., p. 499
  15. Orígenes, Las doctrinas fundamentales 1,2 [entre A.D. 220-330]
    William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. I, The Liturgical Press, Minnesota 1970, p. 190
  16. Orígenes, In Rom. com. 5,9: EH 249
    Johannes Quasten, Patrologia I, Biblioteca de Autores Cristianos 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 395
  17. In Ios. hom. 3,5
    Ibid., p. 394
  18. In Rom. 10,5
    Ibid.
  19. Tertuliano, Prescripciones contra todas las herejías 32,1-4
    Fuentes Patrísticas 14. Tertuliano, Prescripciones contra todas las herejías. Edición preparada por Salvador Vicastillo, Editorial Ciudad Nueva, p. 253-255
  20. Tertuliano, Prescrições contra todas as heresias, 15,2-4; 16,1
    Ibid., pp. 197-199
  21. Tertuliano, Prescrições contra todas as heresias 37,1
    Ibid., p. 275
  22. Tertuliano, Prescrições contra todas as heresias 17,1-3
    Ibid., pp. 199-201
  23. Tertuliano, Prescrições contra todas as heresias 21
    Ibid., pp. 211-215
  24. Tertuliano, De baptismo 1
    Johannes Quasten, Patrologia I, Biblioteca de Autores Cristianos 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 576
  25. São Cipriano, Epist. 67, 5
    New Advent Encyclopedia, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/050667.htm
  26. São Cipriano de Cartago, Ep. 75,3
    New Advent Encyclopedia, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/050675.htm
  27. Cipriano de Cartago, De la Unidad de la Iglesia, 4.5
    Johannes Quasten, Patrologia I, Biblioteca de Autores Cristianos 206, Quinta Edição, Madrid 1995, pp. 645-646
  28. Eusébio, História Eclesiástica IV,21
    Paul L. Maier, Eusebio, Historia de la Iglesia, Editorial Portavoz, Michigan 1999, p. 157
  29. Ep. 74,1
  30. Carta sinodal para os bispos de África, 2 [inter A.D. 368/372]
    William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. I, The Liturgical Press, Minnesota 1970, p. 343
  31. Atanásio de Alexandria, De Decretis Nicaenae synodi 13
    New Advent Encyclopedia, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/2809.htm
  32. Atanásio de Alexandria, De Decretis Nicaenae synodi 4
    New Advent Encyclopedia, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/2809.htm
  33. Atanásio de Alexandria, Contra os pagãos 6
    Ibid., p. 76
  34. Atanásio de Alexandria, Ep. Ad Serap. 1,28
    Johannes Quasten, Patrología II, Biblioteca de Autores Cristianos 217, Quarta Edição, Madrid 1985, p. 70
  35. Atanásio de Alexandria, Cartas Festais 2,6
    Dave Armstrong, The Church Fathers Were Catholic, Lulu Publishing 2007, p. 75
  36. Mansi, Conc. 7,464
  37. Atanásio de Alexandria, Epistula ad Epictetum episcopum Corinthi, 3
    Ibid., p. 81
  38. Agostinho de Hipona, C. ep. Man. 5,6; cf. C. Faustum 28,2   disponível em http://www.newadvent.org/fathers/1405.htm
  39. Agostinho de Hipona, Carta a Jenaro (Ep 54,1-2)
    Obras Completas de San Agustín, Tomo VIII, Biblioteca de Autores Cristianos 69, Madrid 1986, p. 338
  40. Agostinho de Hipona, Sobre o batismo, contra os donatistas V,23,31
    New Advent Encyclopedia, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/14085.htm
  41. Agostinho de Hipona, Carta a Dióscoro (Ep 118,32)
    Obras Completas de San Agustín, Tomo VIII, Biblioteca de Autores Cristianos 69, Madrid 1986, p. 879
  42. Agostinho de Hipona. C. ep. Man. 4,5-6
  43. João Crisóstomo. Homilia sobre a segunda epístola aos tessalonicenses
    William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. II, The Liturgical Press, Minnesota 1979, p. 124
  44. Basílio, o Grande, O Espírito Santo 9,22
    New Advent Encyclopedia, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/3203.htm
  45. Basílio, o Grande, O Espírito Santo 10,25
    Early Church Fathers, disponível em http://www.ccel.org/print/schaff/npnf208/vii.xi
  46. Basílio, o Grande, O Espírito Santo 12,28
    Early Church Fathers, disponível em http://www.ccel.org/print/schaff/npnf208/vii.xiii
  47. Basílio, o Grande, O Espírito Santo 27,66
    William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. II, The Liturgical Press, Minnesota 1979, p. 18-19
  48. Basílio, o Grande, O Espírito Santo 27,67
  49. Ibid., 27,71
  50. Epifânio de Salamina, Medicina contra todas as heresias 61,6
    William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. II, The Liturgical Press, Minnesota 1979, p. 73
  51. Gregório de Nisa. De anima et resurr.: PG 46,49B
    Johannes Quasten, Patrologia II, Biblioteca de Autores Cristianos 217, Quarta Edição, Madrid 1985, p. 316
  52. Gregório de Nisa, Quod non sint tres dii: PG 45.117
    Ibid., p. 317
  53. Cirílo de Jerusalém, Catequeses 4,17
    disponível em http://www.mercaba.org/TESORO/CIRILO_J/Cirilo_06.htm
  54. Cirílo de Jerusalém, Catequeses 5,12
    disponível em http://www.mercaba.org/TESORO/CIRILO_J/Cirilo_07.htm
  55. Cirílo de Jerusalém, Catequeses XVIII,26-27
    disponível em http://www.mercaba.org/TESORO/CIRILO_J/Cirilo_20.htm
  56. Catequeses XXII,9
    disponível em http://www.mercaba.org/TESORO/CIRILO_J/Cirilo_24.htm
  57. Catequeses XXIII,8-9
    disponível em http://www.mercaba.org/TESORO/CIRILO_J/Cirilo_25.htm
  58. ChristianAnswers.net, O que a Igreja primitiva acreditava sobre a autoridade das Sagradas Escrituras?
  59. José Orlandis, El pontificado Romano en la historia, Editorial Palabra, Segunda Edición, Madrid 2003, p. 37-38
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