A Transubstanciação e a Igreja Primitiva

Recentemente recebi esta consulta por correio eletrónico:

Irmãos de apologeticacatolica.org. Há pouco tempo, ouvi a afirmação de que a Eucaristia era uma invenção de Santo Tomás de Aquino e que os primeiros cristãos jamais acreditaram nela. O que há de verdadeiro nisso? Podem comentar o que a Igreja Católica ensina sobre a transubstanciação e se está de acordo com a fé da Igreja primitiva?

Resposta

Algumas denominações protestantes adotaram uma espécie de história alternativa que as leva a distorcer os factos e justificar, assim, as suas próprias doutrinas. Para citar um exemplo, no manual de evangelização da Igreja de Deus (Israelita) escrevem:

“Na História dos Concílios encontramos esta nota, resultado do Concílio de Trento: «No puro e santo sacramento da eucaristia, depois da consagração do pão e do vinho, Nosso Senhor Jesus Cristo é verdadeiramente Deus e homem, real e substancialmente contido na aparência destes elementos visíveis».

Mas nos dias dos primeiros Apóstolos e muitos séculos depois, não se pensava na atual doutrina da missa. Os Padres dos primeiros seis séculos ignoraram completamente esta doutrina romana. A doutrina da transubstanciação da hóstia não se tornou uma doutrina permanente na Igreja Romana até o quarto Concílio de Latrão, sob o Papa Inocêncio III, no ano de 1215 d.C.”1

Primeiro, temos que estudar o que a Igreja realmente ensina sobre a transubstanciação, as posições alternativas que as Igrejas protestantes têm, e, depois, faremos uma revisão do que ensinaram os Padres Apostólicos e Padres da Igreja nos três primeiros séculos do cristianismo.

O que é a Transubstanciação?

Ensina o Concílio de Trento a este respeito:

“Mas, como disse Jesus Cristo, nosso Redentor, que era verdadeiramente o seu corpo o que oferecia sob a espécie de pão, creu por isso perpetuamente a Igreja de Deus, e o mesmo declara agora de novo este mesmo santo Concílio, que pela consagração do pão e do vinho, se converte toda a substância do pão na substância do corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, e toda a substância do vinho na substância do seu sangue, cuja conversão a santa Igreja Católica chamou oportuna e propriamente Transubstanciação.”2

O Catecismo oficial da Igreja Católica, por outro lado, diz:

1412 Os sinais essenciais do sacramento eucarístico são pão de trigo e vinho de videira, sobre os quais é invocada a bênção do Espírito Santo e o presbítero pronuncia as palavras da consagração ditas por Jesus na última ceia: “Isto é o meu Corpo entregue por vós… Este é o cálice do meu Sangue…”

1413 Pela consagração, realiza-se a transubstanciação do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo. Sob as espécies consagradas do pão e do vinho, Cristo mesmo, vivo e glorioso, está presente de maneira verdadeira, real e substancial, com o seu Corpo, o seu Sangue, a sua alma e a sua divindade (cf. Cc. de Trento: DS 1640; 1651).

Com base nisto, podemos definir a transubstanciação como a conversão total da hóstia e do vinho em corpo, sangue, alma e divindade de nosso Senhor Jesus Cristo. Apesar de o pão e o vinho continuarem a conservar o seu aspeto e sabor originais, são realmente Corpo e Sangue do Senhor ocultos sob a aparência de pão e vinho.

A Transubstanciação difere da consubstanciação (posição Luterana), pois a transubstanciação (prefixo “trans”) denota uma mudança de substância, enquanto a consubstanciação (prefixo “con”) significa que não houve mudança alguma da substância e que o Senhor vem com o pão e com o vinho, cuja substância não varia.

O manual de teologia Luterana do professor Georg Metzger, baseado no catecismo de Lutero, explica:

“O nosso catecismo diz-nos acerca do Sacramento do Altar: «É o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de nosso Senhor Jesus Cristo sob o pão e o vinho». Depois, confessamos que na Santa Ceia o corpo e o sangue do Senhor são comidos e bebidos sob o pão e o vinho. Consequentemente, na Santa Ceia ainda estão presentes o pão e o vinho. Confessamos isto em oposição à falsa doutrina da Igreja Católica Romana. O Papa e os seus seguidores ensinam que na Santa Ceia o pão e o vinho se convertem no corpo e no sangue de Cristo, de modo que, depois que o sacerdote tenha abençoado as coisas terrenas, já não existam pão e vinho, mas somente o corpo e o sangue de Cristo. Contrariamente a isto, a Escritura ensina-nos que na Santa Ceia comemos também pão e bebemos vinho. 1 Coríntios 11,26-28; 10,16. Assim, o pão na Santa Ceia ainda é pão, e o vinho ainda é vinho. Mas ao comer o pão na Santa Ceia, ao mesmo tempo comemos o verdadeiro corpo do Senhor. E ao beber o vinho na Santa Ceia, ao mesmo tempo bebemos o verdadeiro sangue do Senhor. Assim, de acordo com as claras palavras de Deus, a Santa Ceia é o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de nosso Senhor Jesus Cristo sob o pão e o vinho.”3

Portanto, embora católicos e luteranos confessemos que a Eucaristia é o verdadeiro Corpo e Sangue do Senhor, diferimos no sentido de que nós acreditamos que o pão e o vinho consagrados são agora corpo e sangue de Cristo, ocultos sob as espécies de pão e vinho, e os luteranos acreditam que continuam a ser também pão e vinho.

No entanto, uma grande quantidade de Igrejas protestantes tem uma posição distinta, tanto da católica como da luterana, pois acreditam e afirmam que Cristo não está presente na Eucaristia, mas que o pão e o vinho são simples símbolos. O mesmo manual luterano mencionado anteriormente explica-o da seguinte maneira:

“c. O nosso catecismo diz-nos: ‘É o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de nosso Senhor Jesus Cristo.’

Quer dizer que é o corpo real, natural de Cristo e o seu sangue real e natural. Por que é que o nosso catecismo enfatiza isso? Faz isso por causa dos falsos profetas e das igrejas que não querem acreditar no mistério da Santa Ceia. Especialmente as igrejas reformadas, as seitas, os metodistas, os pentecostais, na verdade, todas as outras igrejas protestantes fora da luterana ensinam assim. Não querem acreditar nestas palavras de Cristo; não querem acreditar que estão realmente presentes o corpo e o sangue de Cristo na Santa Ceia e que os que vêm ao sacramento realmente comam e bebam estas coisas. É, de facto, um mistério maravilhoso. Não podemos compreendê-lo pela nossa razão. Parece-nos impossível. Em consequência, essas igrejas ensinam que se deve tomar as palavras de Cristo figurativamente, entendê-las noutro sentido. Segundo elas, Cristo não queria dizer que a Santa Ceia fosse realmente o seu verdadeiro corpo natural, mas apenas que o pão significa o seu corpo, que o retrata. Referia-se apenas ao corpo espiritual de Cristo. Os cristãos devem receber este corpo espiritual na Santa Ceia, ou seja, Cristo e os seus benefícios, com fé, enquanto que o verdadeiro corpo natural do Senhor está sentado no céu. Contra esses falsos profetas, que se baseiam na sua própria razão, o nosso catecismo diz: ‘É o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo.’”4

O que ensinavam os Santos Padres?

Vistas as diferenças entre todas as posições encontradas, entremos diretamente nos escritos dos Padres Apostólicos e daqueles que viveram antes de Santo Tomás de Aquino, para investigar se esta doutrina era realmente acreditada pela Igreja Cristã ou se era uma nova doutrina criada por Santo Tomás.

Para a minha investigação, utilizarei as traduções apresentadas nos livros Textos Eucarísticos Primitivos, Tomos I e II, por Jesús Solano, B.A.C., Padres Apostólicos, por Daniel Ruiz Bueno, B.A.C., e Padres Apologetas Gregos, Daniel Ruiz Bueno, B.A.C., e aprofundarei nos comentários que os autores fazem nas suas obras, especialmente nos de Jesús Solano.

Inácio de Antioquia (? – 107 d.C.)

No que diz respeito à Eucaristia, São Inácio apresenta-se sempre muito claro e categórico. Chama à Eucaristia “medicina de imortalidade” e expressa categoricamente: “A Eucaristia é a carne do nosso Salvador Jesus Cristo”. Condena vigorosamente os docetas, que afirmavam que Jesus não tinha tido um corpo verdadeiro, mas apenas aparente, e por esse erro, comenta São Inácio, não queriam participar na Eucaristia e morriam espiritualmente por se afastarem do dom de Deus.

“…partindo de um mesmo pão, que é medicina de imortalidade, antídoto para não morrer, mas viver para sempre em Cristo Jesus.”5

“Não encontro prazer na comida corruptível, nem me atraem os deleites desta vida. Quero o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo, da linhagem de David; quero o seu sangue como bebida, que é amor incorruptível.”6

“Empenhai-vos, portanto, em participar de uma só Eucaristia; pois uma só é a carne de Nosso Senhor Jesus Cristo e um só é o cálice para nos unir ao seu sangue, um só altar, assim como não há mais que um só bispo, juntamente com o colégio de anciãos e com todos os diáconos, meus consiervos. Desta forma, tudo quanto fizerdes, fá-lo-eis segundo Deus.”7

“[Os docetas] também se afastam da Eucaristia e da oração, porque não confessam que a Eucaristia é a carne do nosso Salvador Jesus Cristo, a mesma que padeceu pelos nossos pecados, a mesma que, por sua bondade, o Pai ressuscitou. Assim, pois, os que contradizem o dom de Deus, morrem e perecem entre as suas disquisições. Quanto melhor lhes seria celebrar a Eucaristia, para que pudessem ressuscitar!”8

“Só aquela Eucaristia deve ser considerada válida, que se celebra sob a autoridade do bispo ou daquele a quem ele a confiar… Não é lícito sem o bispo nem batizar nem celebrar ágapes.”9

Apesar da evidência, alguns protestantes levantaram a objeção de que São Inácio também chama “carne” de Jesus Cristo a coisas que não o são em sentido próprio. Por exemplo, na carta aos Filadélfios, ele diz: “Adhiri-me ao Evangelho como à carne de Jesus” (c.5), texto que apenas expressa o desejo de se aderir a ambos, sem inferir que sejam a mesma coisa.

Na carta aos Filadélfios, ele escreve: “à [Igreja] que saúdo no sangue de Jesus Cristo, o qual é a minha alegria eterna e imperturbável”. Mas, novamente, aqui não há nada que permita deduzir que se nega a presença real.

Na carta aos Tralianos, ele escreve: “Vós, revestindo-vos de mansidão, regenerai-vos pela fé, que é a carne do Senhor, e pela caridade, que é o sangue de Cristo” (c.8). A este respeito, explica Jesús Solano que o fato de um autor usar, por vezes, uma palavra em sentido simbólico não implica que sempre a use nesse sentido. São Inácio usa a palavra “carne” ou “sangue” não menos de trinta e sete vezes, e apenas aqui a utiliza em sentido simbólico. Sabe-se também, por fontes literárias, que os docetas negavam a realidade da carne do Senhor; portanto, é ilógico pensar que, quando São Inácio condena a sua doutrina, ele entenda a carne no mesmo sentido simbólico que eles, uma vez que os docetas não negavam a carne nesse sentido.

A Didaqué (65 – 80 d.C.)

A Didaqué é muito categórica ao afirmar que nem todos podem participar na Eucaristia, pois não se pode “dar o santo aos cães”. Antes de participar, exige-se a confissão dos pecados para que o sacrifício seja puro. É também um testemunho claro de que a Igreja primitiva já reconhecia na Eucaristia o sacrifício sem mancha e perfeito apresentado ao Pai em Malaquias 1,11: “Pois desde o nascer do sol até ao poente, grande é o meu Nome entre as nações, e em todo o lugar se oferece ao meu Nome um sacrifício de incenso e uma oblação pura. Pois grande é o meu Nome entre as nações, diz Yahveh Sebaot”.

“Que ninguém, porém, coma ou beba da vossa Ação de Graças, a não ser os batizados em nome do Senhor, pois acerca disso disse o Senhor: Não deis o santo aos cães.”10

“Reunidos a cada dia do Senhor, parti o pão e dai graças, depois de terdes confessado os vossos pecados, a fim de que o vosso sacrifício seja puro. Todo aquele que tiver contenda com o seu companheiro, não se junte convosco até que se tenham reconciliado, para que o vosso sacrifício não seja profanado. Porque este é o sacrifício de que falou o Senhor: Em todo o lugar e em todo o tempo se me oferece um sacrifício puro, porque eu sou um grande rei, diz o Senhor, e o meu nome é admirável entre as nações.”11

Justino Mártir (100 – 168 d.C.)

São Justino mantém o testemunho unânime da Igreja ao confessar que a Eucaristia não é um alimento comum, mas sim “carne e sangue daquele Jesus feito carne”. Apesar de ter que combater as acusações feitas aos cristãos de comer carne humana, e apesar de que, para se defender dessas acusações, pudesse alegar que a Eucaristia era um “símbolo”, ele não o faz; pelo contrário, professa com absoluta clareza o realismo de que a carne e o sangue de Jesus Cristo são alimento para os cristãos.

Uma das obras célebres de São Justino é o Diálogo com Trifão, no qual mantém um debate com um judeu da época. Nesta obra, ele volta a testemunhar a fé da Igreja primitiva, afirmando que a Eucaristia é o Sacrifício perpétuo e sem mancha do qual falava o profeta em Malaquias 1,11, em contraste com a perspectiva protestante que nega o caráter sacrificial da Eucaristia e afirma que a Ceia do Senhor é apenas um simples memorial.

Um comentário importantíssimo para o tema em questão é feito por Jesús Solano em sua obra Textos Eucarísticos Primitivos, onde ele aponta que São Justino, com toda clareza, exclui a permanência do pão juntamente com a carne do Senhor, rejeitando a consubstanciação. O paralelismo de ideias leva-o a dizer que, assim como Jesus Cristo tinha carne e sangue, o alimento eucarístico tem a carne e o sangue de Jesus; no entanto, ele não diz isso, mas, mudando a construção, escreve que o alimento eucarístico é a carne e o sangue de Jesus (transubstanciação). Esta expressão exclui a permanência do pão e, no seu sentido óbvio, indica a mudança, a conversão do pão na carne do Senhor. Isso é confirmado pelo uso que São Justino inventa para a palavra “dar graças”: até ele, tinha um sentido intransitivo; ele a usa no passivo: “alimento eucaristizado”, que, ao pé da letra, traduziríamos como: “alimento feito ação de graças”. Esta passiva tão incomum, inventada por São Justino, unida à mudança de construção que acabamos de mencionar, acentua a nota de uma mudança operada no alimento ordinário, em virtude da qual o pão é agora carne de Cristo.

“Este alimento é chamado entre nós de Eucaristia, da qual a ninguém mais é lícito participar, senão aquele que acredita que a nossa doutrina é verdadeira, e que foi purificado com o batismo para o perdão dos pecados e para a regeneração, e que vive como Cristo ensinou.

Porque estas coisas não as tomamos como pão ordinário, nem como bebida ordinária, mas, assim como pelo Verbo de Deus, tendo-se encarnado Jesus Cristo nosso Salvador, Ele teve carne e sangue para a nossa salvação, assim também nos foi ensinado que o alimento eucaristizado mediante a palavra (verbo) de oração proveniente d’Ele — alimento do qual o nosso sangue e a nossa carne se nutrem, conforme à nossa transformação — é a carne e o sangue daquele Jesus que se encarnou.

Pois os Apóstolos, nos comentários por eles compostos, chamados Evangelhos, nos transmitiram o que assim lhes havia sido transmitido: que Jesus, tendo tomado o pão e dado graças, disse: Fazei isto em memória de mim; este é o meu corpo, e que só a eles fez participantes. O que também nos mistérios de Mitra os demónios malvados ensinaram a fazer, tomando-o por imitação. Porque sabeis, ou podeis saber, que quando alguém é iniciado neles, oferece-se um pão e um cálice de água, e são acrescentados certos versos.

Nós, portanto, depois disso, recordamos sempre estas coisas entre nós; e os que temos, socorremos a todos os necessitados, e estamos sempre unidos uns com os outros. E por todas as coisas das quais nos alimentamos, bendizemos ao Criador de tudo, por meio de seu Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. E no dia chamado do sol, há uma reunião num mesmo local de todos os que habitam nas cidades ou nos campos, e leem-se os comentários dos Apóstolos ou as escrituras dos Profetas, enquanto o tempo o permite. Depois, quando o leitor termina, o que preside exorta e incita, por meio da palavra, à imitação dessas coisas excelsas. Depois, levantamo-nos todos juntos e recitamos orações; e, como antes dissemos, quando terminamos de orar, são apresentados pão, vinho e água, e o que preside eleva, conforme o poder que nele há, orações e igualmente ações de graças, e o povo aclama dizendo Amém. E cada um recebe a parte das coisas eucaristizadas, e aos ausentes envia-se por meio dos diáconos.

Os ricos que querem, cada um conforme a sua vontade, dão o que lhes parece, e o que se reúne é posto à disposição do que preside, e ele socorre os órfãos e as viúvas, e os que por doença ou por qualquer outra causa estão desamparados, e os encarcerados, e os peregrinos, e, numa palavra, ele cuida de todos os que sofrem necessidade. E reunimo-nos todos os dias do sol, pois é o primeiro dia no qual Deus, mudando as trevas e a matéria, criou o mundo, e Jesus Cristo, nosso Salvador, no mesmo dia ressuscitou de entre os mortos. Pois um dia antes do de Saturno, Ele foi crucificado, e um dia depois do de Saturno, que é o dia do sol, apareceu aos Apóstolos e discípulos e lhes ensinou estas coisas que propus à vossa consideração.”12

“Por isso, como disse, Deus fala por Malaquias, um dos doze, acerca dos sacrifícios que então eram oferecidos por vós: A minha vontade não está em vós, diz o Senhor, e não aceitarei ofertas das vossas mãos. Porque desde o nascer do sol até ao seu ocaso, o meu nome é glorificado entre as nações, e em todo o lugar se oferece ao meu nome incenso e oferta pura, pois grande é o meu nome entre as nações, diz o Senhor, mas vós o profanais.

Já então, prediz acerca dos sacrifícios que em todo lugar são oferecidos a Ele por nós, os gentios, isto é, o pão da Eucaristia e o cálice igualmente da Eucaristia, acrescentando que nós glorificamos o seu nome, e vós, em contrapartida, o profanais.”13

“Mas com o objetivo de vos explicar a revelação de Jesus Cristo o Santo, torno a tomar a palavra [de Zacarias] e digo que também essa revelação foi feita para nós, que acreditamos em Cristo, neste Pontífice que foi crucificado…

Pois assim como aquele Jesus, que é chamado sacerdote pelo profeta, apareceu com vestes manchadas…, assim nós, que pelo nome de Jesus como um só homem acreditámos no Deus Criador de todas as coisas, tendo-nos despojado, pelo nome de seu Filho primogénito, das vestes velhas manchadas…, assim nós, que pelo nome de Jesus como um só homem acreditámos no Deus Criador de todas as coisas, tendo-nos despojado, pelo nome de seu Filho primogénito, das vestes velhas, isto é, dos pecados, inflamados pela palavra do seu chamamento, somos a verdadeira raça sacerdotal de Deus; conforme atesta o próprio Deus ao dizer que em todo o lugar entre os gentios há quem lhe ofereça sacrifícios agradáveis e puros [cf. Mal 1,11].

Pois de todos os sacrifícios por meio deste nome, os quais Jesus Cristo ordenou que se fizessem, a saber, na Eucaristia do pão e do cálice, sacrifícios que os cristãos fazem em todos os lugares da terra, Deus já atesta antecipadamente que lhe são agradáveis. Em contrapartida, rejeita os que vós fazeis, e por meio daqueles vossos sacerdotes, dizendo: E os vossos sacrifícios não aceitarei das vossas mãos: pois desde o nascer do sol até ao seu ocaso, o meu nome é glorificado, diz Ele, entre as nações, enquanto que vós o profanais [Mal 1,10ss].”14

Irineu de Lyon (130 – 202 d.C.)

Na teologia apresentada por São Irineu, acontece o mesmo que com São Justino: a certeza de que o pão e o vinho consagrados são o corpo e o sangue de Cristo é clara. Ele afirma explicitamente que “o cálice é o seu próprio Sangue” (o de Cristo) e que “o pão já não é pão ordinário, mas Eucaristia constituída por dois elementos: terreno e celestial” (Comenta Jesús Solano que São Irineu não se refere aqui a como a Eucaristia está constituída, mas a como chega a constituir-se: o elemento terreno é “o pão” e o elemento celeste é “a invocação (epíclese) de Deus”).

São Irineu também deixa testemunho de que, em grupos heréticos, também se compartilhava a fé da Igreja de que o pão e o vinho realmente se convertem em corpo e sangue de Cristo, mas para eles não é possível afirmar que o pão consagrado por eles (os hereges) realmente o seja, porque desconhecem que Cristo é o Verbo, Filho do Criador do mundo. Ele exorta-os a mudar de opinião ou a deixar de oferecer esse sacrifício.

“Mas dando também aos discípulos o conselho de oferecerem as primícias das suas criaturas a Deus, não como se Ele precisasse delas, mas para que eles mesmos não sejam infrutíferos nem ingratos, tomou o pão, que é algo da criação, e deu graças, dizendo: ‘Este é o meu corpo’. E da mesma forma afirmou que o cálice, que é da nossa criação terrena, era o seu sangue; e ensinou a nova oblação do Novo Testamento, a qual, recebendo-a dos Apóstolos, a Igreja oferece em todo o mundo a Deus, que nos dá os alimentos, primícias dos seus dons no Novo Testamento; sobre o qual Malaquias, um dos doze Profetas, profetizou assim: Em verdade, não tenho agrado em vós, diz o Senhor Todo-Poderoso, e não aceitarei sacrifício das vossas mãos. Porque desde o nascer do sol até ao poente, o meu nome é glorificado entre as nações, e em todo o lugar se oferece incenso ao meu nome e um sacrifício puro, pois grande é o meu nome entre as nações, diz o Senhor Todo-Poderoso. Significando claramente com isso que o povo anterior cessará de oferecer a Deus, pois em todo lugar se oferecerá sacrifício a Ele, e este será puro; e o seu nome é glorificado entre as nações.”15

“Como, então, saberão que esse pão, no qual foram dadas as graças, é o corpo do seu Senhor, e o cálice é o seu sangue, se não dizem que Ele é o Filho do Criador do mundo, isto é, o seu Verbo, por quem a madeira frutifica, as fontes jorram, e a terra dá primeiro o talo, depois a espiga e, finalmente, o trigo pleno na espiga?

E como dizem também que a carne se corrompe e não participa da vida, sendo alimentada pelo corpo e sangue do Senhor? Portanto, ou mudem de opinião ou deixem de oferecer essas coisas. Para nós, ao contrário, a crença concorda com a Eucaristia, e a Eucaristia, por sua vez, confirma a crença. Pois oferecemos a Ele as suas próprias coisas, proclamando de acordo a comunhão e a união da carne e do espírito. Porque, assim como o pão que é da terra, ao receber a invocação de Deus, já não é pão ordinário, mas Eucaristia, constituída por dois elementos: terreno e celestial, assim também os nossos corpos, ao receberem a Eucaristia, não são corruptíveis, mas possuem a esperança da ressurreição para sempre.”16

“E [o discípulo verdadeiramente espiritual] examinará verdadeiramente a doutrina de Marcião, como entende que há dois deuses, separados entre si por uma distância infinita…! E como, se o Senhor é filho de outro Pai [diferente do Criador], procedia justamente quando, tomando o pão desta nossa criação, confessava ser o seu corpo, e a mistura, afirmava ser o seu sangue?”17

“E são completamente vãos aqueles que desprezam toda a ordem divina e negam a salvação da carne e desprezam a sua regeneração, dizendo que ela não é capaz de incorruptibilidade. Mas, se esta [a carne] não é salva, então nem o Senhor nos redimiu com o seu sangue, se o cálice da Eucaristia é participação do seu sangue; nem o pão que partimos é participação do seu corpo. Pois o sangue não procede senão das veias, da carne e da restante substância humana, da qual verdadeiramente feito o Verbo de Deus, nos redimiu com o seu sangue. Como também o diz o seu Apóstolo: ‘no qual temos, pela sua sangue, redenção, a remissão dos pecados’.

Porque somos seus membros e alimentados por meio da criação, e nos oferece a criação, fazendo nascer o seu sol e chover, como quer, assegurou que aquele cálice da criação é o seu próprio sangue, com o qual aumenta o nosso sangue, e reafirmou que aquele pão da criação é o seu corpo, com o qual incrementa os nossos corpos.

Quando, pois, o cálice misturado e o que se tornou pão recebem o Verbo de Deus e se fazem Eucaristia, corpo de Cristo, com os quais a substância da nossa carne é aumentada e se vai constituindo, como dizem que a carne não é capaz do dom de Deus, que é a vida eterna, a carne alimentada com o corpo e o sangue do Senhor, e feita membro d’Ele? Como diz o bem-aventurado Apóstolo na carta aos Efésios: ‘Porque somos membros do seu corpo, da sua carne e dos seus ossos’; e isso não o diz de um homem pneumático [espiritual] e invisível, porque o espírito não tem ossos nem carne, mas sim do organismo verdadeiramente humano que consiste em carne, nervos e ossos, e que se alimenta do seu cálice, que é o seu sangue, e aumenta com o pão, que é o seu corpo. E da mesma maneira que o sarmento da videira, plantado na terra, produziu fruto a seu tempo, e o grão de trigo, caído na terra e desfeito, se levantou multiplicando pelo Espírito de Deus que tudo contém; e depois, pela Sabedoria de Deus, chegaram a ser de utilidade para os homens, e, recebendo a palavra de Deus, chegam a ser Eucaristia, que é o corpo e o sangue de Cristo, assim também os nossos corpos, alimentados com ela e colocados na terra e desfeitos nela, ressuscitarão a seu tempo, concedendo-lhes a ressurreição o Verbo de Deus para a glória de Deus Pai.”18

Tertuliano (160 – 220 d.C.)

Embora Tertuliano não seja considerado um padre da Igreja, mas sim um apologista, e no final da sua vida tenha caído em heresia ao abraçar o montanismo, foi amplamente lido antes de abandonar a Igreja Católica.

Alguns apologistas protestantes tentaram utilizar excertos dos textos de Tertuliano para sugerir que ele desconhecia a presença real. Um exemplo da manipulação desses textos pode ser encontrado no site administrado por Daniel Sapia, num artigo desenvolvido por Guillermo Hernández Agüero. A citação utilizada pelo Senhor Guillermo no seu contexto é esta:

“…Com grande desejo, desejei comer a Páscoa convosco antes de padecer. Oh, destruidor da Lei, que ansiava ainda observar a Páscoa! Certamente que Ele se deleitaria com a carne do cordeiro judeu. Ou será que Ele, que estava destinado a ser levado ao sacrifício como uma ovelha, e que, como uma ovelha diante do que a tosquia, não deveria abrir a boca, desejava realizar a figura do seu sangue salvador? Poderia também ter sido entregue por qualquer estranho para que eu não dissesse que também nisto o salmo estava cumprido: Aquele que come pão comigo levantará contra mim o seu calcanhar… Mas isto seria próprio de outro Cristo, não daquele que realizava as profecias…

Tendo declarado, pois, que Ele com grandes ânsias havia desejado comer a Páscoa, como sendo sua, pois é indigno que Deus deseje algo alheio, tendo tomado o pão e distribuído aos discípulos, fê-lo seu corpo, dizendo: Este é o meu corpo, ou seja, «figura do meu corpo». Mas não teria sido figura, se não fosse corpo verdadeiro. Além disso, uma coisa vã, como um fantasma, não poderia conter a figura.

Ou, se por isto fez do pão o seu corpo, porque lhe faltava um corpo verdadeiro, então deveria ter entregado o pão por nós. Para o vazio de Marcião, teria sido crucificado o pão, e não mais o melão que Marcião tinha em vez de coração? Não compreendendo que esta figura do corpo de Cristo é antiga, que diz por Jeremias: Urdiam tramas contra mim, dizendo: Vinde, lancemos um pedaço de madeira no seu pão, ou seja, a cruz no seu corpo. Assim, aquele que ilumina as antigas figuras, ao chamar o pão de seu corpo, declarou suficientemente que quis significar então o pão. E assim, na comemoração do cálice, constituindo o testamento selado com o seu sangue, confirmou a substância do seu corpo. Porque o sangue não pode ser de corpo algum que não seja de carne. Porque, se nos opõem alguma propriedade não carnal do corpo, certamente, se não é carnal, não terá sangue. Assim, a prova da realidade do corpo será confirmada pelo testemunho da carne, e a prova da realidade da carne pelo testemunho do sangue. E para que reconheças a antiga figura do sangue no vinho, Isaías diz… Muito mais manifestamente o Gênesis, na bênção de Judá, de cuja tribo deveria provir a origem da carne de Cristo, já então prefigurando Cristo em Judá: Lavará, disse, em vinho a sua veste, e em sangue de uvas o seu manto, significando a estola e o manto a carne e o vinho o sangue. Assim, agora consagrou o seu sangue no vinho, aquele que então fez do vinho figura do seu sangue…”19

Para entender as palavras de Tertuliano, é necessário estudar o contexto. Marcião negava que Cristo tivesse um corpo verdadeiro, daí que a força do argumento de Tertuliano consistia em explicar que o pão não poderia ser o corpo verdadeiro de Cristo, se Cristo não tivesse um corpo verdadeiro. Como poderia a Igreja acreditar que o pão consagrado era o corpo de Cristo se Cristo não tinha corpo? Adicionalmente, quando ele diz: “O pão fez-se corpo”, denota uma mudança de substância. A realidade da Eucaristia e a fé da Igreja demonstravam a realidade física do corpo de Cristo.

Ele utiliza a expressão “figura do seu corpo” para se referir ao corpo real. Fala do pão eucarístico como figura do corpo de Cristo, porque o verdadeiro corpo de Cristo tinha sido anunciado no Antigo Testamento pelos Profetas sob a figura do pão, assim como o verdadeiro sangue tinha sido prefigurado no vinho. Mais adiante, Tertuliano termina afirmando a realidade do corpo de Cristo na Eucaristia, referindo-se a ela como um “sacramento”.

No entanto, há outros textos de Tertuliano que não deixam dúvidas sobre a sua posição em relação à Eucaristia. Chama a atenção especialmente quando afirma que sofrem ansiedade se algo do cálice ou do pão cai ao chão, o que não faria sentido se fossem apenas símbolos.

“Por isso, pelo sacramento do pão e do cálice, já provamos no Evangelho a verdade do corpo e do sangue do Senhor contra o fantasma propagado por Marcião…”20

“O sacramento da Eucaristia confiado pelo Senhor no momento da ceia, e a todos, também o recebemos nas reuniões antes do amanhecer, e não das mãos de outros, mas das daqueles que presidem;… Sofremos ansiedade se algo do nosso cálice ou também do nosso pão cai ao chão.”21

“O zelo da fé falará chorando neste ponto: é possível que um cristão venha dos ídolos para a Igreja, do ateliê do adversário para a casa de Deus; que levante as mãos que adoraram os ídolos a Deus Pai; que reze com aquelas mãos às quais lá fora se ora contra Deus, e aproxime ao corpo do Senhor aquelas mãos que conduzem os corpos aos demónios?…”22

“… recebe então também o primeiro anel, com o qual, depois de interrogado, sela o compromisso da fé, e assim, em seguida, é alimentado com as delícias do corpo do Senhor, a saber, com a Eucaristia.”23

Clemente de Alexandria (150 – 217 d.C.)

Clemente de Alexandria é testemunha da prática litúrgica de “eucaristizar” segundo uma norma fixa da Igreja, o pão, e a mistura de vinho e água, mas combate os hereges encratitas que eucaristizavam apenas a água. Ele chama a Eucaristia de “oblação” e afirma que ela foi figurada no alimento santificado de vinho e pão que Melquisedeque deu. Afirma que há um alimento de pão que é o próprio Jesus, e quem come desse pão não morre. Afirma que Jesus também se dá como bebida de imortalidade.

O texto mais obscuro de Clemente sobre a Eucaristia encontra-se na sua obra O Pedagogo. Afirma aqui que a Eucaristia é por si mesma vivificante e que dá a imortalidade; o Espírito é quem produz essa vivificação, e este Espírito é para Clemente a força do Verbo, ou seja, a natureza divina do Verbo. No entanto, distingue o sangue carnal do Senhor, com o qual fomos redimidos, do sangue espiritual (pneumático) “com o qual fomos ungidos” e que nos torna participantes da incorruptibilidade. Pelo contexto, vê-se que esse “sangue espiritual” é o Espírito vivificante, e não é que Clemente insinue a ideia de que na Eucaristia não está o verdadeiro Sangue do Senhor. Em segundo lugar, Clemente fala da Eucaristia como mistura da bebida (vinho com água) e do Verbo. A expressão não diz nada sobre a presença real do Senhor na Eucaristia, mas sim aponta as causas que intervêm na confecção da Eucaristia.

“É, pois, necessário que ambos se provem a si mesmos: um para ver se é digno de dizer e deixar comentários, o outro para ver se é tão justo que possa escutar e ler; assim como também aqueles que, como é costume, repartem a Eucaristia, permitindo a cada um do povo tomar a parte correspondente.”24

“E aos desprovidos de inteligência recomendo dizendo, assim fala a Sabedoria manifestamente referindo-se aos que andam entre as heresias: tomai às escondidas gostosamente os pães e a doce água roubada [Prov 9,16s]; designando claramente o pão e a água, não em outras heresias, mas naquelas que, contra a regra da Igreja, utilizam pão e água na oblação; pois há também quem eucaristize apenas a água [não misturada com vinho].”25

“Pois Salem interpreta-se paz, da qual paz é descrito como rei o nosso Salvador, de quem Moisés diz: Melquisedeque, rei de Salem, sacerdote do Deus Altíssimo [Gen 14,18]; este deu o pão e o vinho como alimento santificado em figura [tipo] da Eucaristia.”26

“Eu [o Salvador] sou teu sustentador, que me dei a mim mesmo [como] pão, do qual quem provou não faz mais experiência da morte, e que me dei a mim mesmo [como] bebida de imortalidade.”27

Hipólito (? – 235 d.C.)

São Hipólito é categórico ao afirmar que se evite diligentemente que o infiel coma da Eucaristia, pois “é o corpo de Cristo”.

“Depois que Judá esteve com ela [cf. Gen 38,16ss], deu-lhe um penhor, a saber: três coisas, o anel de selar, o cordão e o bastão que ele levava na mão: estas eram as provas de que ele havia estado com ela. Da mesma forma, Cristo deu à sua Igreja três coisas, a saber, o seu corpo, o seu sangue e o batismo. E se Tamar foi salva por três coisas, a saber, pelo anel, pelo cordão e pelo bastão, assim a santa Igreja, por três coisas, pela profissão de fé, pelo corpo e pelo sangue, foi igualmente salva da idolatria, e escolheu também para os seus filhos a salvação da mundanidade por meio de Cristo: e nós recebemos o seu corpo e o seu sangue, pois Ele é o penhor da vida eterna para todo aquele que com humildade se aproxima d’Ele.”28

“…Depois diz: Depois das sessenta e duas semanas, terão passado os tempos… Ele fará o Testamento para muitos durante uma semana; e no meio da semana será retirado o sacrifício e a libação sacrificial; e sobre o santuário, uma abominação desoladora [cf. Dan 9,26s]. Assim, uma vez cumpridas as sessenta e duas semanas e uma vez vindo Cristo e pregado o Evangelho em toda parte, quando os tempos estiverem cumpridos, restará uma semana, a última, na qual aparecerão Elias e Enoque. E no meio dela virá a abominação desoladora [Dan 9,27], o anticristo, que anunciará ao mundo a devastação. Depois que ele vier, será retirado o sacrifício e a libação sacrificial, os quais são agora oferecidos a Deus pelos gentios em toda parte [cf. Mal 1,11].”29

“Ambas as coisas forneceu ao mundo o corpo do Senhor: sangue sagrado e água santa.”30

“Cada fiel procure tomar a Eucaristia antes de provar qualquer outra coisa. Pois se ele for fiel em tomá-la, mesmo que lhe seja dado veneno mortal, este [veneno] não terá poder sobre ele. Que todos evitem diligentemente que o infiel coma da Eucaristia, ou que [o façam] os ratos ou outro qualquer animal, [e evitem que] qualquer outra coisa em absoluto caia na Eucaristia e [que algo] pereça. É o corpo de Cristo, do qual todos os fiéis se alimentam, e não deve ser desprezado…”31

Orígenes (185 – 254 d.C.)

Em relação à Eucaristia, os escritos de Orígenes seguem a mesma linha que o restante dos Padres. Assim como Tertuliano, ele mostra preocupação para que o pão e o vinho consagrados não caiam ao chão. Afirma que “assim como o maná era alimento em enigma, agora claramente a carne do Verbo de Deus é verdadeiro alimento, como Ele mesmo diz: Minha carne é verdadeira comida e meu sangue verdadeira bebida”. Em todos esses casos, Orígenes refere-se ao “verdadeiro alimento” não como pão, mas como “a carne do Verbo de Deus”. Afirma também que receber o corpo indignamente causa ruína para si mesmo e refere-se à celebração eucarística como “a mesa do corpo de Cristo e do cálice mesmo de seu sangue”.

“…Se subires, pois, com Ele para celebrar a Páscoa, Ele te dará o cálice do Novo Testamento; Ele te dará também o pão da bênção, conceder-te-á o seu corpo e o seu sangue.”32

“Conheceis vós, que costumais assistir aos divinos mistérios, como, quando recebestes o corpo do Senhor, o guardais com toda cautela e veneração, para que não caia nem um pouco dele, nem desapareça algo do dom consagrado. Pois considerais como culpa, e com razão, se algo dele se perde por negligência. E se empregais, e com justa razão, tanta cautela para conservar o seu corpo, como julgais menos impiedoso descuidar-se da sua palavra do que do seu corpo?”33

“Antes, o batismo estava em enigma na nuvem e no mar; agora a regeneração está claramente na água e no Espírito Santo. Então o maná era alimento em enigma, agora claramente a carne do Verbo de Deus é verdadeiro alimento, como Ele mesmo diz: Minha carne é verdadeiramente comida e meu sangue verdadeiramente é bebida.”34

“E entrarão nelas [as coisas escolhidas do mundo] sem consideração [Ez 7,22 segundo os LXX; cf. V.20 também segundo os LXX]… Assim deve-se dizer que entra sem consideração nas coisas santas da Igreja, se alguém, depois do ato conjugal, indiferente à impureza que em si contraiu, consente em orar sobre o pão da Eucaristia, pois este tal profana as coisas santas e comete uma ação desordenada.”35

“[Mt 26,23]… E se podes entender a mesa espiritual, o alimento espiritual e a ceia do Senhor, de tudo isso Cristo se dignou fazer Judas partícipe, verás ainda mais a grandeza de sua maldade, pois entregou o Salvador, mestre e ao mesmo tempo alimento da mesa divina e do cálice (e isso no dia da Páscoa), sem se lembrar nos bens corporais do amor do mestre, nem nos espirituais de sua doutrina, sempre repartida sem inveja. Como ele, são na Igreja todos aqueles que tramam ciladas contra seus irmãos, com os quais frequentemente estiveram juntos na mesma mesa do corpo de Cristo e no mesmo cálice de seu sangue.”36

“Não temes comungar o corpo de Cristo, ao te aproximares da Eucaristia como se fosses limpo e puro, e como podes fugir do juízo de Deus? Não te lembras daquilo que está escrito: que por isso há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que morrem? Por que muitos fracos? Porque não se julgam a si mesmos, nem se examinam, nem entendem o que é participar da Igreja, nem o que é aproximar-se de tantos e tão sublimes sacramentos. Padecem o que costumam padecer aqueles que têm febre, quando se atrevem a comer os manjares dos sãos, a saber, que a si mesmos acarretam a ruína.”37

“E Celso, por essa causa, como homem que desconhece a Deus, dá suas graças aos demônios; nós, pelo contrário, dando graças ao Criador de tudo, comemos os pães oferecidos com a ação de graças e a oração sobre os dons recebidos, feitos pela oração um certo corpo santo e santificador daqueles que dele se servem com propósito sadio.”38

No obstante, comenta Jesús Solano que Orígenes tiene un texto muy discutido que reproduciremos a continuación, el cual, aunque no es propiamente un texto eucarístico, emplea la terminología eucarística en sentido alegórico. Para quem conhece a paixão de Orígenes por relacionar entre si textos da Sagrada Escritura e por buscar alegorias naquele ambiente de “gnose” em Alexandria, não oferece nenhum problema sério acerca de sua ortodoxia o fato de ele se expressar com semelhantes alegorias. Seria injusto e anticientífico deduzir o pensamento eucarístico de Orígenes a partir de um ou outro trecho, e não do conjunto de todos eles. Apesar de Orígenes ter tido numerosos adversários, não há notícia de que alguém o tenha impugnado por sua doutrina eucarística menos pura.

Este pão que o Deus Verbo confessa ser seu corpo é a palavra que alimenta as almas, palavra procedente do Deus Verbo e pão do pão celestial que foi posto sobre a mesa da qual está escrito: ‘Preparaste uma mesa diante de mim, à vista dos meus inimigos’. E esta bebida que o Deus Verbo confessa ser seu sangue é a palavra que sacia a sede e embriaga prodigiosamente os corações dos que bebem, bebida que está no cálice do qual se escreveu: ‘Quão excelente é o teu cálice que embriaga’. E esta bebida é fruto da videira verdadeira que diz: ‘Eu sou a verdadeira videira’, e é o sangue daquela uva que, lançada no lagar da paixão, produziu esta bebida. Como também o pão é a palavra de Cristo, feita daquele trigo que, caindo na terra, deu muito fruto. Pois não ao pão visível que tinha nas mãos chamava Deus Verbo de seu corpo, mas à palavra em cujo mistério aquele pão devia ser partido; nem àquela bebida visível chamava seu sangue, mas à palavra em cujo mistério aquela bebida devia ser derramada. Porque corpo ou sangue do Deus Verbo, que outra coisa pode ser senão a palavra que alimenta e a palavra que alegra o coração?”39

Cipriano de Cartago (200 – 258 d.C.)

Os textos eucarísticos de São Cipriano são demasiadamente abundantes para citá-los todos.

“…armemos também a destra com a espada espiritual, para que rejeite com fortaleza os funestos sacrifícios, para que, lembrando-se da Eucaristia, a [destra] que recebe o corpo do Senhor o abrace a ele mesmo, ela que em pouco tempo há de receber do Senhor o prêmio das coroas celestiais.”40

“…mãos esclarecidas, que não estavam acostumadas senão a obras divinas, resistiram aos sacrifícios sacrílegos; as bocas santificadas com os manjares celestiais, depois do corpo e do sangue do Senhor, rejeitaram o contágio do profano e os restos dos ídolos.”41

“Voltando dos altares do diabo, aproximaram-se do santo do Senhor com mãos sórdidas e infectas pelo mau cheiro; quase ainda eructando os mortíferos alimentos dos ídolos, assaltam o corpo do Senhor com bocas que ainda exalam seu crime e fedem a funestos contágios, sendo que a Escritura divina vem ao encontro, e clama e diz: [Lev 7,20; 1 Cor 10,21; 11,27]…”42

Firmiliano de Cesareia (? – 268 d.C.)

“…Além disso, quão grande é o delito daqueles que são admitidos ou dos que admitem a tocar o corpo e o sangue do Senhor, não tendo lavado suas manchas pelo batismo da Igreja nem tendo deposto seus pecados, usurpando temerariamente a comunhão, sendo assim que está escrito: ‘Quem quer que coma o pão ou beba o cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor.’”43

Novaciano (? – 258 d.C.)

No excerto do escrito que se reproduz a seguir, ele questiona o absurdo de que um cristão vá aos espetáculos pagãos. Considera sumamente reprovável a atitude de um cristão que se atreveu a entrar com a Eucaristia em locais indignos.

“…atrevendo-se a levar consigo ao lupanar o santo, se pudesse, aquele que, apressando-se a ir ao espetáculo, despedido do sacrifício do Senhor e levando ainda consigo, como é costume, a Eucaristia, levou este infiel, por entre os corpos obscenos das meretrizes, o santo corpo de Cristo, merecendo mais castigo por esse caminho do que pelo prazer do espetáculo.”44

Este pretende ser apenas um breve resumo do que a Igreja ensinou durante os primeiros 3 séculos a respeito da Eucaristia. Cobrir os primeiros 6 séculos seria muito mais extenso, e, se desejar mais informações, pode consultar os tomos I e II da obra Textos Eucarísticos Primitivos de Jesús Solano, da Biblioteca de Autores Cristianos (BAC).

Para finalizar a resposta ao questionamento inicialmente proposto, basta simplesmente analisar os fatos: Se Santo Tomás de Aquino viveu de 1225 a 1274 d.C., é impossível atribuir-lhe “a invenção da transubstanciação”. O que Santo Tomás fez foi desenvolver a terminologia para explicar a conversão do pão e do vinho eucarísticos, que sustenta a presença real de Cristo. Dessa maneira, responde a uma questão central na teologia eucarística: Como unir de modo claro a realidade visível significante (o pão e o vinho) e a realidade invisível significada (o corpo e o sangue de Cristo)? Segundo o santo, ambas são preservadas no ensino da transubstanciação: Por um lado, os acidentes do pão e do vinho são os símbolos reais que significam a paixão e a ressurreição de Cristo; o que se vê é a realidade significante. Por outro lado, o que é invisível aos sentidos, a conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, serve para conduzir os fiéis à realidade significada, a presença real da pessoa do Salvador.

Tomás entende por substância uma coisa ou pessoa examinada em seu ser intrínseco, dotada de uma unidade e de uma consistência próprias, abstraindo-se de suas qualidades e propriedades diversas. Um homem, composto de muitas substâncias diversas (sangue, ossos, tecidos…) é sempre uma só substância. Portanto, na Eucaristia, ocorre uma mudança de substâncias no sentido de que o ser intrínseco do pão e do vinho, uma realidade metafísica, não experimentável pelos sentidos e invisível, se converte no ser intrínseco do corpo e do sangue de Cristo. O corpo de Cristo não pode ser tocado ou comido em sua espécie própria, mas apenas nas espécies sacramentais que o ocultam aos nossos olhos e à nossa experiência sensível.

Notas de rodapé

  1. Citação retirada da Web em http://www.iglesiadedios-israelita.org/manual_evangelismo.htm
  2. Concilio de Trento. CAP. IV. De la Transubstanciación. Disponível em [http://www.mercaba.org/CONCILIOS/trento05.htm]
  3. Georg Metzger, Manual de teologia Luterana baseado no catecismo de Lutero, VI.d
  4. Georg Metzger, Manual de teologia Luterana baseado no catecismo de Lutero, VI.c:
  5. Inácio de Antioquia, Carta aos Efésios, 20,2
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, Biblioteca de Autores Cristianos 65, Quinta Edição, Madrid 1985, p. 459
  6. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos 7,3
    Ibid., p. 479
  7. Inácio de Antioquia, Carta aos Filadélfios 4
    Ibid., p. 483
  8. Inácio de Antioquia, Carta aos Esmirniotas 7,1
    Ibid., p. 492
  9. Inácio de Antioquia, Carta aos Esmirniotas 8,1
    Ibid., p. 493
  10. Didaché 9,5
    Ibid., p. 86
  11. Didaché 14
    Ibid., p. 91
  12. Justino Mártir, Apología I,66
    Jesús Solano, Textos Eucarísticos Primitivos, Tomo I, Biblioteca de Autores Cristianos 88, Terceira Edição (reimpressão), Madrid 1996, pp. 61-64
  13. Justino Mártir, Diálogo com o judeu Trifão. 41,3
    Ibid., p. 65
  14. Justino Mártir, Diálogo com o judeu Trifão 116
    Jesús Solano, Textos Eucarísticos Primitivos, Tomo I, Biblioteca de Autores Cristianos 88, Terceira Edição (reimpressão), Madrid 1996, pp. 66-67
  15. Irineu de Lyon, Contra as heresias IV,17,5
  16. Irineu de Lyon, Contra as heresias IV,18,4 
  17. Irineu de Lyon, Contra as heresias IV,33,2
  18. San Irineu, Contra as heresias 5,2,2
    Jesús Solano, Textos Eucarísticos Primitivos, Tomo I, Biblioteca de Autores Cristianos 88, Terceira Edição (reimpressão), Madrid 1996, pp. 77-78
  19. Tertuliano, Contra Marcião 4,40
    Ibid., pp. 96-98
  20. Tertuliano, Contra Marcião 5,8
    Ibid., p. 99
  21. Tertuliano, Sobre a coroa 3
    Ibid., pp. 100-101
  22. Tertuliano, Sobre a idolatria 7
    Ibid., pp. 101-102
  23. Tertuliano, Sobre a honestidade 9
    Ibid., p. 103
  24. Clemente de Alexandria, Stromata 1,1
    Ibid., pp. 106-107
  25. Clemente de Alexandria, Stromata 1,19
    Ibid., p. 107
  26. Clemente de Alexandria, Stromata 4,25
    Ibid.
  27. Clemente de Alexandria, Que rico se salvará? 23
    Ibid., p. 109
  28. Hipólito, Segmentos exegéticos. Gen 38,19 (ACHELIS, 96; fragmento árabe).
    Ibid., p. 111
  29. Hipólito, Comentário a Daniel 4,35
    Ibid., pp. 113-114
  30. Hipólito, Sobre os dois ladrões I. Io 19,34
    Ibid., p. 114
  31. Hipólito, Tradição Apostólica (DIX; Funk, 115s; Botte, 66s).
    Ibid., p. 121
  32. Orígenes, Sobre Jeremias. Homilia 19,13
    Ibid., p. 132
  33. Orígenes, Sobre o Êxodo. Homilia 13,3
    Ibid., p. 127
  34. Orígenes, Sobre os Números. Homilia 7,2
    Ibid., p. 129
  35. Orígenes, Sobre Ezequiel 7,22
    Ibid.
  36. Orígenes, Série de comentários 82
    Ibid., p. 136
  37. Orígenes, Sobre o Salmo 37. Homilia 2,6
    Ibid., pp. 131-132
  38. Orígenes, Contra Celso 8,33
    Ibid., p. 140
  39. Orígenes, Série de comentários 85
    Ibid., pp. 36-37
  40. Cipriano, Carta 58,9
    Ibid., p. 148
  41. Cipriano, Acerca dos caídos [na idolatria] 2
    Ibid., p. 174
  42. Cipriano, Acerca dos caídos [na idolatria] 15
    Ibid., p. 175
  43. Firmiliano, Extractos Carta 75,21
    Ibid., p. 185
  44. Novaciano, Sobre os espetáculos 5
    Ibid., p. 186
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