O Sacramento da Penitência na Bíblia e nos Padres da Igreja

A penitência é “um Sacramento da Nova Lei instituído por Cristo onde é concedido perdão pelos pecados cometidos após o batismo através da absolvição do sacerdote àqueles que, com verdadeiro arrependimento, confessam os seus pecados e prometem dar satisfação pelos mesmos. É chamado de ‘sacramento’ e não de uma simples função ou cerimónia porque é um sinal interno instituído por Cristo para impartir graça à alma. Como sinal externo, compreende as ações do penitente ao apresentar-se ao sacerdote e acusar-se dos seus pecados, e as ações do sacerdote ao pronunciar a absolvição e impor a satisfação”1.

É importante notar que “a confissão não é realizada no segredo do coração do penitente, nem a um leigo como amigo e defensor, nem a um representante da autoridade humana, mas sim a um sacerdote devidamente ordenado com a jurisdição requerida e com o poder das chaves, ou seja, o poder de perdoar pecados que Cristo concedeu à Sua Igreja”2. O objetivo deste estudo é aprofundar o fundamento bíblico e histórico do Sacramento, analisar à luz desta evidência os erros introduzidos na esteira da Reforma Protestante, bem como as distorções históricas que se propagaram nas denominações dela derivadas, ao ponto de se tornarem uma história alternativa completamente diferente da real.

O fundamento bíblico

A faculdade que a Igreja tem de conceder, em nome de Deus, o perdão dos pecados provém do próprio Cristo, que conferiu esta faculdade aos seus Apóstolos ao dizer-lhes: “A paz esteja convosco. Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio. E dito isso, soprou sobre eles e disse: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos»”3. Também disse a Pedro: “A ti darei as chaves do Reino dos Céus; e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mateus 16, 19) e aos Apóstolos: “Em verdade vos digo: tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu.” (Mateus 18, 18)

O significado de ligar e desligar não se limita à autoridade de definir o que é lícito e o que não é em termos de doutrina, mas também à faculdade de conceder o perdão dos pecados, já que o poder concedido aqui não é limitado: “tudo o que ligardes”, “tudo o que desligardes”, poder que, por sua vez, é confirmado explicitamente por Cristo ao permitir perdoar ou reter os pecados.

Objeções protestantes

Existem inúmeras objeções por parte das diferentes denominações protestantes em relação ao Sacramento da Penitência. O protestantismo, em geral, declara que não é necessária a intervenção humana para que Deus perdoe o pecado, e que este deve ser confessado em privado apenas a Deus.

Um exemplo pode ser encontrado no Manual Prático para a Obra do Evangelismo Pessoal, onde se afirma:

“não encontramos nas Sagradas Escrituras uma única linha que ordene ao cristianismo confessar os seus pecados a um homem.”4

Outro exemplo está nos comentários de um dos numerosos apologistas amadores do protestantismo na internet, que escreve com mais entusiasmo do que sabedoria:

“Jesus Cristo admitiu implicitamente que o único que perdoa os pecados é Deus (Marcos 2, 7 e Lucas 5, 21). E o próprio Apóstolo João afirma que Deus é fiel e justo para perdoar os pecados—Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e limpar-nos de toda a maldade—(1 João 1, 8-9). Nem neste texto, nem em qualquer outro da Escritura, está registrado que algum Apóstolo agiu como confessor ou absolveu pecados de algum cristão.”5

Este tipo de objeção comete o erro de confundir quem concede o perdão (Deus) com o meio que Deus utiliza para administrá-lo (o sacerdote). O texto citado não entra em contradição com a confissão do pecado diante do sacerdote ou da Igreja, mas o deixa implícito (parte de algo que já se sabia—que à Igreja foi concedida a faculdade de perdoar pecados—para nos fazer entender que Deus é fiel e justo para perdoar a quem reconhece suas faltas). Isso se torna mais claro ao se analisar o contexto inteiro. O versículo anterior diz: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos” e complementa o seguinte “[mas] se reconhecermos os nossos pecados, fiel e justo é Ele para nos perdoar”. O texto é em si uma exortação ao reconhecimento das próprias faltas (em vez de negá-las) e nunca uma desculpa ou aval para confessar os nossos pecados diretamente a Deus.

Também é errado afirmar que Cristo admitiu que só Deus perdoa o pecado. A Escritura indica que Ele tem a faculdade para fazê-lo, sem entrar em polêmica sobre sua divindade: “Pois, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder de perdoar pecados” (Mateus 9,6). Em seguida, Ele prova, por meio de um milagre físico (o sinal externo da cura do paralítico), o que é um verdadeiro milagre espiritual (a realidade interna do perdão dos pecados). Assim, na conclusão deste ensinamento, é declarado: “E ao ver isto, a multidão temeu e glorificou a Deus, que dera tal poder aos homens” (Mateus 9,8). É óbvio que isto não se refere à cura física, que era a prova tangível de um milagre muito maior, mas sim ao milagre em si da cura espiritual do enfermo através do perdão dos seus pecados. E, mesmo que Cristo naquele momento tivesse querido reconhecer isso implicitamente (o que não concedemos), isso também não impediria que Cristo posteriormente pudesse transmitir esse poder aos seus Apóstolos, como está firmemente atestado na Escritura.

Tampouco é verdade que nenhum Apóstolo ou outro tenha agido como confessor, ou que não exista na Escritura a menção de confessar pecados a qualquer homem. Existem referências bíblicas explícitas que refutam essas afirmações, demonstrando que os pecadores arrependidos não se limitavam à confissão interior. O Evangelho de Marcos narra como aqueles que acudiam a João Batista para serem batizados confessavam-lhe seus pecados:

“Acudia a ele gente de toda a região da Judeia e todos de Jerusalém, e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.” (Mateus 3,6)

O mesmo se afirma daqueles que, ao se converterem, procuravam os Apóstolos:

“Muitos dos que haviam crido vinham confessar e declarar as suas práticas.” (Atos 19,18)

Existe também evidência de que o pecador não apenas devia confessar seu pecado a Deus, mas também à Igreja:

Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para que sejais curados.” (Tiago 5,16)

Embora não vejamos nesses textos uma confissão auricular como a conhecemos hoje, podemos perceber dois fatos chave: Cristo concedeu aos Apóstolos a faculdade de perdoar pecados, e o pecador não se limitava à confissão interior. Como poderiam os Apóstolos perdoar pecados secretos a menos que os fiéis os confessassem?

Falha também a objeção de que, quando na Escritura se ordena confessar os pecados, se refere a pedir perdão aos irmãos que ofendemos. Se bem que uma ofensa é um pecado, nem todos os pecados são ofensas ao próximo, e reduzir assim o significado do texto é desvirtuar o significado real e completo da passagem.

Quando a Escritura fala de confissão de pecados, não se refere a pedir perdão a algum irmão por tê-lo ofendido. Compare-se essa interpretação com Marcos 1, 5: “Acudia a ele gente de toda a região da Judeia e todos de Jerusalém, e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.” Devemos interpretar que toda a gente da Judeia e Jerusalém havia ofendido João Batista? Se aplicarmos a Atos 19, 18: “Muitos dos que haviam crido vinham confessar e declarar as suas práticas”, devemos interpretar que todos os novos convertidos haviam ofendido os Apóstolos? Note que o texto aqui é particularmente claro, porque fala de confessar e declarar “as suas práticas”, não as suas ofensas. Lembremo-nos também que o primeiro ofendido pelos nossos pecados é Deus, pois todo pecado é, primeiramente, uma violação da justiça divina.

Evidência da Reconciliação no Antigo Testamento

A realidade sacramental da Igreja é precedida na história pelo seu modelo profético, a Lei Mosaica. Nela, vemos (Levítico cc. 4 e 5) que Deus exigia um sacrifício cerimonial pelos pecados cometidos. O sacrifício era realizado no Tabernáculo (mais tarde no Templo) e diante dos sacerdotes, o que, por si só, constitui uma admissão pública do pecado. O exercício dessas cerimónias era público e, além disso, ensinava aos pecadores a consequência inevitável do pecado: a morte. O animal que era sacrificado morria no lugar do pecador. O modo de execução desses sacrifícios é um equivalente do Sacramento da Reconciliação que não se pode negar, no qual tanto o sacerdote como o fiel têm uma participação claramente definida.

“Se for uma pessoa do povo que pecar inadvertidamente e se tornar culpada, cometendo uma falta contra alguma das proibições contidas nos mandamentos do Senhor, uma vez que lhe seja dado a conhecer o pecado que cometeu, apresentará como oferta pela falta cometida, uma cabra fêmea e sem defeito. Imporá a sua mão sobre a cabeça da vítima e imolá-la-á no lugar do holocausto. Depois, o sacerdote molhará o seu dedo no sangue, colocá-lo-á sobre os chifres do altar dos holocaustos e derramará o resto do sangue sobre a base do altar. Em seguida, removerá toda a gordura da vítima, como se faz nos sacrifícios de comunhão, e queimá-la-á sobre o altar, como aroma agradável ao Senhor. Desta forma, o sacerdote praticará o rito de expiação em favor dessa pessoa, e assim será perdoada. Se o que traz como oferta pelo pecado for um cordeiro, deverá ser fêmea e sem defeito. Imporá a sua mão sobre a cabeça da vítima e imolá-la-á no lugar onde se imolam os holocaustos. Depois, o sacerdote molhará o seu dedo no sangue da vítima, colocá-lo-á sobre os chifres do altar dos holocaustos, e derramará todo o sangue sobre a base do altar. Em seguida, removerá toda a gordura do animal, como se remove a gordura do cordeiro nos sacrifícios de comunhão, e queimá-la-á sobre o altar, juntamente com as ofertas que se queimam para o Senhor. Desta forma, o sacerdote praticará o rito de expiação em favor dessa pessoa, pelo pecado que cometeu, e assim será perdoada.” (Levítico 4,27-35)

Evidência histórica

Existe uma grande variedade de distorções históricas em relação ao sacramento da penitência entre as denominações protestantes. Alguns veem a confissão auricular (componente importante do Sacramento) como uma invenção do segundo milénio. Um exemplo desse tipo de distorções pode ser encontrado no Manual práctico para la obra del evangelismo personal já citado, o qual afirma a este respeito:

“A confissão auricular aos sacerdotes foi oficialmente estabelecida na Igreja Romana no ano de 1215. Mais tarde, no Concílio de Trento, em 1557, pronunciou maldições sobre todos aqueles que haviam lido a Bíblia o suficiente para pôr de lado a confissão auricular.”6

É importante esclarecer que as definições dogmáticas dos concílios não podem ser interpretadas como se de alguma forma estivessem a introduzir uma nova doutrina. Estas geralmente ocorrem quando alguma verdade fundamental é questionada ou necessita de ser definida claramente para o bem dos fiéis.

Embora a confissão auricular como a conhecemos hoje possa ter-se desenvolvido na sua forma exterior ao longo do tempo, veremos que a sua essência reside no fato reconhecido da reconciliação do pecador por meio da autoridade da Igreja. E esse fato faz parte do legado da Igreja, tendo existido desde que Cristo concedeu esse poder aos Apóstolos. Verificaremos que a disciplina penitencial, incluindo a confissão dos pecados diante do sacerdote e da Igreja, existe desde os tempos apostólicos.

Examinemos a Didaché (60-160 d.C.), considerada um dos mais antigos escritos cristãos não canónicos e que antecede em muito a maioria dos escritos do Novo Testamento. Estudos recentes indicam uma possível data de composição anterior a 160 d.C. É um excelente testemunho do pensamento da Igreja primitiva. Esse documento é particularmente insistente em exigir a confissão dos pecados antes de receber a Eucaristia.

“Na reunião dos fiéis confessarás os teus pecados e não te aproximarás da oração com má consciência.”7

Na Didaché temos um testemunho histórico precoce que se opõe à posição protestante de confessar os pecados diretamente a Deus.

Orígenes (185 – 254 d.C.)

Afirma que, após o batismo, há meios para obter o perdão dos pecados cometidos depois deste. Entre eles, enumera a penitência.

“Além dessas três, há também uma sétima [razão], embora dura e laboriosa: a remissão de pecados por meio da penitência, quando o pecador lava a sua almofada com lágrimas, quando as suas lágrimas são o seu sustento dia e noite, quando não se abstém de declarar o seu pecado ao sacerdote do Senhor nem de buscar o remédio, à maneira de quem diz: «Perante o Senhor acusar-me-ei a mim mesmo das minhas iniquidades, e tu perdoarás a deslealdade do meu coração».”8

Assim, Orígenes admite uma remissão de pecados através da penitência e da confissão diante de um sacerdote. Afirma que é o sacerdote quem decide se os pecados devem ser confessados também em público.

“Observa com cuidado a quem confessas os teus pecados; põe à prova o médico para saber se ele é fraco com os fracos e se chora com os que choram. Se ele achar necessário que o teu mal seja conhecido e curado na presença da assembleia reunida, segue o conselho do médico experiente.”9

Reconhece também que todos os pecados podem ser perdoados:

“Os cristãos choram como mortos os que se entregaram à intemperança ou cometeram qualquer outro pecado, porque se perderam e morreram para Deus. Mas, se derem provas suficientes de uma sincera mudança de coração, são readmitidos no rebanho depois de algum tempo (após um intervalo maior do que quando são admitidos pela primeira vez), como se tivessem ressuscitado dos mortos.”10

Tertuliano (160 – 220 d.C.)

Tanto no seu período ortodoxo como no seu período herético, encontramos em Tertuliano um testemunho ímpar sobre a prática primitiva da penitência na Igreja.

Quando escreve De paenitentia (aproximadamente no ano 203 d.C., ainda sendo católico), fala de uma segunda penitência que Deus “colocou no vestíbulo para abrir a porta aos que batem, mas somente uma vez, porque esta já é a segunda”.11

Nos textos de Tertuliano, vê-se uma compreensão clara de como o crente que caiu em pecado após o batismo tem necessidade do Sacramento da Penitência e expressa o temor de que este seja mal entendido pelos fracos como um meio para continuar a pecar e obter novamente o perdão:

“Ó Jesus Cristo, Senhor meu! Concede aos teus servos a graça de conhecer e aprender da minha boca a disciplina da penitência, mas apenas na medida em que lhes convém e não para pecar; em outras palavras, que depois (do batismo) não tenham de conhecer a penitência nem pedi-la. Repugna-me mencionar aqui a segunda, ou melhor dizendo, neste caso, a última penitência. Temo que, ao falar de um remédio de penitência que se tem em reserva, pareça sugerir que ainda existe um tempo em que se pode pecar.”12

Tertuliano fala de “pedir” a penitência, descartando a possibilidade de limitar-se a uma confissão direta com Deus. Ele explica isso detalhadamente ao afirmar que, para alcançar o perdão, o penitente deve submeter-se à confissão pública (έξομολόγησις), e, adicionalmente, cumprir os atos de mortificação (capítulos 9-12).

O Testemunho de Tertuliano prova também que a penitência terminava, tal como hoje em dia, com uma absolvição oficial, após a confissão do pecado:

“[Eles] evitam este dever como uma revelação pública das suas pessoas, ou adiam-no de um dia para o outro… Será acaso melhor ser condenado em segredo do que ser perdoado em público?” No capítulo XII, ele fala da condenação eterna que sofrem aqueles que não quiseram utilizar esta segunda «planca salutis».”

No seu período montanista, Tertuliano nega à Igreja o poder de perdoar pecados graves (adultério e fornicação), afirmando que tal faculdade foi concedida apenas a Pedro e negando que ele a tenha transmitido à Igreja. As razões desta negativa não são as mesmas que os protestantes mantêm hoje em dia, mas sim o caráter rigoroso da doutrina montanista, que afirmava que tais pecados eram imperdoáveis.

É assim que ele se retrata do que escreveu anteriormente, redigindo De Pudicitia (Sobre a Modéstia), quando se vê compelido a enfrentar um bispo a quem chama de Pontifex Maximus e Episcopus Episcoporum (muito possivelmente o Papa Calisto), em virtude de um edito onde escreve: “perdoo os pecados de adultério e fornicação àqueles que cumpriram a penitência”, confirmando assim o poder da Igreja de perdoar pecados, mesmo que se trate de adultério e fornicação. Este edito é outra evidência da posição oficial da Igreja, que tem consciência do poder recebido de Cristo para conceder o perdão dos pecados.

Deixa assim Tertuliano o seu testemunho hostil sobre a prática da Igreja pré-nicena:

“E desejo conhecer o teu pensamento, saber que fonte te autoriza a usurpar este direito para a Igreja. Sim, porque o Senhor disse a Pedro: «Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja», «a ti te dei as chaves do Reino dos Céus», ou ainda: «Tudo o que desatares na terra, será desatado; tudo o que atares, será atado»; tu presumes então que o poder de atar e desatar desceu até ti, isto é, a toda a Igreja que está em comunhão com Pedro. Que audácia a tua, que pervertes e mudas inteiramente a intenção manifesta do Senhor, que conferiu este poder pessoalmente a Pedro!”13

Cipriano de Cartago (200 – 258 d.C.)

Cipriano é um claro expositor da consciência da Igreja de ter recebido de Cristo o poder de perdoar pecados. Para ele, a penitência pública compreendia três atos distintos: confissão, satisfação proporcionada à gravidade do pecado e reconciliação uma vez terminada a satisfação. Ele combate a heresia de Novaciano, que negava haver perdão para aqueles que, em tempos de perseguição, tivessem renegado a fé (os lapsi), bem como o rigorismo de Tertuliano após este abraçar o montanismo. Assim, em De opere et eleemosynis, ele afirma que aqueles que pecaram após receber o Batismo podem voltar a obter o perdão, qualquer que seja o pecado. Cipriano também deixa um testemunho claro do dever de confessar o pecado enquanto houver tempo e enquanto essa confissão puder ser recebida pela Igreja:

“Exorto-vos, caríssimos irmãos, para que cada um confesse o seu pecado, enquanto aquele que pecou ainda vive neste mundo, ou seja, enquanto a sua confissão pode ser aceite, enquanto a satisfação e o perdão concedido pelos sacerdotes são ainda agradáveis a Deus.”14

Hipólito Mártir (? – 235 d.C.)

Hipólito é um excelente testemunho de como a Igreja estava consciente da sua própria autoridade para perdoar pecados, pois, mesmo sendo intransigente, ele não chega a negar a faculdade da Igreja para a absolvição. Há evidências disso em La Tradición Apostólica (Αποστολική παράδοσις), onde nos deixa um testemunho indiscutível ao reproduzir a oração para a consagração de um bispo:

“Pai que conheces os corações, concede a este teu servo que escolheste para o episcopado… que, em virtude do Espírito do sacerdócio soberano, tenha o poder de «perdoar os pecados» (facultatem remittendi peccata) segundo o teu mandamento; que «distribua as partes» segundo o teu preceito, e que «desate toda atadura» (solvendi omne vinculum iniquitatis), segundo a autoridade que deste aos Apóstolos.”15

Este testemunho é particularmente importante, pois La Tradición Apostólica é a fonte de um grande número de constituições eclesiásticas orientais, o que confirma que essa consciência estava difundida por toda a Igreja.

As Constituições Apostólicas do Século IV

Assim como na Tradición Apostólica de São Hipólito, as Constituições Apostólicas escritas na Síria no século IV incluem uma oração similar na ordenação do bispo:

“Concede-lhe, ó Senhor todo-poderoso, através de Cristo, a participação no Teu Santo Espírito para que tenha o poder de perdoar pecados de acordo com o Teu preceito e a Tua ordem, e para soltar toda atadura, seja qual for, de acordo com o poder que concedeste aos Apóstolos.”16

Basilio de Cesareia (329 – 379 d.C.)

Quasten comenta que, embora K. Holl opine que foi São Basílio quem introduziu a confissão auricular no sentido católico, como confissão regular e obrigatória de todos os pecados, inclusive dos mais secretos17, ele também acrescenta:

“O seu erro, contudo, está em identificar a Confissão Sacramental com a ‘confissão monástica’, que era simplesmente um meio de disciplina e de direção espiritual e não implicava reconciliação nem absolvição sacramental. Na sua Regra18, São Basílio ordena que o monge deve revelar o seu coração e confessar todas as suas ofensas, até os seus pensamentos mais íntimos, ao seu superior ou a outros homens probos que gozem da confiança dos irmãos. Neste caso, o posto do superior pode ser ocupado por alguém que tenha sido eleito como seu representante. Não há a menor indicação de que o superior ou o seu substituto tenham que ser sacerdotes. Pode-se dizer, portanto, que Basílio inaugurou o que se conhece como ‘confissão monástica’, mas não a confissão auricular, que constitui uma parte essencial do Sacramento da Penitência.”19

Quasten também comenta:

“Das suas cartas canónicas (cf. supra, p. 234) deduz-se que ainda estava em vigor a disciplina que existia nas igrejas da Capadócia desde os tempos de Gregório Taumaturgo.

A expiação consistia na separação do penitente da assembleia cristã (Capítulo VII). Na Epístola Canónica, menciona quatro graus: o estado dos «que choram», cujo lugar estava fora da igreja, προίσκλαυσις; o estado dos «que ouvem», que estavam presentes para a leitura da Sagrada Escritura e para o sermão, άκρόασης; o estado dos «que se prostram», que assistiam de joelhos à oração, ύπόσταση; por último, o estado daqueles que «estavam de pé» durante todo o ofício, mas não participavam na comunhão (σύστασις).”

Ambrósio de Milão (340 – 396 d.C.)

Entre 384 d.C. e 394 d.C., Ambrósio compôs De Paenitentia, um tratado não homilético em dois livros, no qual refuta as afirmações dos novacianos sobre o poder da Igreja de perdoar pecados e oferece informações de particular interesse para compreender a prática penitencial da Igreja de Milão no século IV.

“Professam mostrando reverência ao Senhor, reservando somente a Ele o poder de perdoar pecados. Não pode haver erro maior do que o que cometem ao tentar revogar Suas ordens, desfazendo o ofício que Ele conferiu. A Igreja O obedece em ambos os aspectos, tanto ao ligar o pecado como ao soltá-lo; porque o Senhor quis que ambos os poderes fossem iguais.”20

Ambrósio ensina que este poder é uma função do sacerdócio, que pode perdoar todos os pecados:

“Parece impossível que os pecados devam ser perdoados através da penitência; Cristo concedeu este [poder] aos Apóstolos e, dos Apóstolos, ele foi transmitido ao ofício dos sacerdotes.”21

“O poder de perdoar estende-se a todos os pecados: Deus não faz distinção; Ele prometeu misericórdia para todos e aos Seus sacerdotes concedeu a autoridade para perdoar sem nenhuma exceção.”22

Agostinho de Hipona (354 – 430 d.C.)

Escreve contra aqueles que negam que a Igreja tenha recebido o poder de perdoar pecados:

“Não escutemos aqueles que negam que a Igreja de Deus tem o poder de perdoar todos os pecados.”23

Para finalizar, citaremos brevemente outros testemunhos claros. São Paciâncio, bispo de Barcelona (m. 390 d.C.), escreve a respeito do perdão dos pecados: “Este que tu dizes, só Deus o pode fazer. Bastante certo: mas quando o faz através dos Seus sacerdotes, é o Seu fazer, do Seu próprio poder.24 São Atanásio (295-373 d.C.) escreve: “Assim como o homem batizado pelo sacerdote é iluminado pela Graça do Espírito Santo, assim também aquele que, em penitência, confessa os seus pecados, recebe através do sacerdote o perdão em virtude da graça de Cristo.25

Estes são apenas alguns dos muitos testemunhos que evidenciam que a Igreja sempre teve plena consciência de ter recebido de Cristo a faculdade de perdoar pecados e considera este dom como parte do depósito da fé. Surpreendentemente, tanto os padres do Oriente quanto do Ocidente interpretam as palavras de Cristo tal como nós, católicos, fazemos quase vinte séculos depois. É evidente, portanto, que o Concílio de Trento apenas se faz eco do que a Igreja já ensinava em oposição aos hereges dos primeiros séculos, os quais, em sua grande maioria, nem sequer defendiam a posição protestante de hoje, pois a maioria deles não rejeitava que a Igreja tivesse recebido tal faculdade.

Notas de rodapé

  1. Enciclopédia Católica
  2. Ibid.
  3. João 20, 21-23
  4. Igreja de Deus (Israelita), Manual Prático para a Obra do Evangelismo Pessoal
  5. Daniel Sapia, La confesión auricular, disponível em [www.conocereislaverdad.org]
  6. Igreja de Deus (Israelita), Manual prático para a obra do evangelismo pessoal
  7. Didaché IV, 14.
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, Biblioteca de Autores Cristianos 65, Quinta Edição, Madrid 1985, p. 82.
  8. William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. I, The Liturgical Press, Minnesota 1970, p. 207.
  9. Homilías sobre los Salmos 37, 2, 5.
    Johannes Quasten, Patrología I, Biblioteca de Autores Cristianos 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 395.
  10. Contra Celsum 3, 50: EH 253.
    Ibid., p. 396.
  11. De Paenitentia 7.
    Ibid., p. 597.
  12. Ibid., pp. 597-598.
  13. De Pudicitia 21.
    Ibid., p. 631.
  14. De Lapsi 28; Epístola 16, 2.
    Ibid., p. 674.
  15. La Tradición Apostólica 3.
    Ibid., pp. 509-510.
  16. Constitutione Apostolica VIII, 5 p. i., 1. 1073.
    Enciclopedia Católica, Sacramento de la penitencia.
  17. Enthusiasmus p. 257; 2.a ed. 267.
  18. Regulae fusius tractae 25, 26 e 46.
  19. Johannes Quasten, Patrología II, Biblioteca de Autores Cristianos 217, Quarta Edição, Madrid 1985, pp. 258-259.
  20. De poenitentia I, ii, 6
    Enciclopedia Católica, Sacramento de la penitencia.
  21. De poenitentia II, ii, 12
    Ibid.
  22. De poenitentia I, iii, 10
    Ibid.
  23. De agonia Christi, III.
    Ibid.
  24. Epistola I ad Simpron, 6 em P.L., XIII, 1057.
    Ibid.
  25. Fragmentum contra Novatum p. XXVI, 1315.
    Ibid.
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