Objeções protestantes
Uma das acusações protestantes mais comuns contra a Igreja Católica é a que afirma que a veneração à Virgem Maria provém do paganismo. Um exemplo deste tipo de objeções foi retirado de um artigo protestante publicado na web:
“A maioria dos aderentes à fé católica refere-se alegremente à Virgem Maria como a Rainha do Céu e entende este termo como uma expressão de carinho, amor e adoração. Será este um termo bíblico ou um título pagão? Deus está agradado com este título ou está fortemente desgostoso?”
Em seguida, começam a citar textos bíblicos onde se menciona uma deusa pagã que os judeus chamavam de “Rainha do Céu” e com a qual cometiam pecado de idolatria:
“«Quanto à palavra que nos dirigiste em nome de Javé, não te daremos ouvidos, mas cumpriremos tudo o que dissemos, isto é, queimar incenso à Rainha do Céu e derramar-lhe libações, como vínhamos fazendo nós, os nossos pais, os nossos reis e os nossos chefes nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém; então, tínhamos fartura de pão, éramos felizes e não nos acontecia nenhum mal. Mas, desde que deixámos de queimar incenso à Rainha do Céu e de lhe derramar libações, passámos a ter falta de tudo e perecemos pela espada e pela fome.» «Quando nós queimávamos incenso à Rainha do Céu e lhe derramávamos libações, acaso era sem o consentimento dos nossos maridos que lhe fazíamos bolos com a sua imagem e lhe derramávamos libações?»” (Jeremias 44,16-19)
Assim, o raciocínio protestante é simples: como os católicos chamam Maria de “Rainha do Céu” e esse título era utilizado no paganismo, a veneração a Maria deriva necessariamente da influência de religiões pagãs sobre o cristianismo. Daí que o autor se confunda e assuma que os católicos atribuem esse título a Maria como uma forma de “adoração”.
O problema é que este tipo de raciocínio é falacioso. A falácia Post Hoc Ergo Propter Hoc é um erro lógico que ocorre quando se assume que algo é a causa de outra coisa, simplesmente porque o primeiro evento precede o segundo no tempo.
Raciocinando dessa forma, poderíamos paganizar quase toda a Bíblia. Os gregos, por exemplo, acreditavam que Osíris havia morrido como homem, mas ressuscitado como imortal, sendo também responsável por julgar os mortos. Investigadores como Martin Hengel sustentaram que existem paralelos1 significativos entre a religião dionisíaca e o cristianismo. Outro investigador, Barry Powell2, afirma que as noções cristãs de comer e beber a carne e o sangue de Jesus foram influenciadas pelo culto a Dionísio. Em outro paralelismo traçado por alguns autores, sustenta-se que Dionísio precede Jesus na atribuição de ter transformado água em vinho3. Outros paralelos poderiam ser retirados da própria Bíblia, pois o título de Cristo como Rei dos Reis já era ostentado por Nabucodonosor (Ezequiel 26,7). Se nos dedicarmos a procurar, encontraremos muitos paralelismos entre o cristianismo e as culturas pagãs e assumiremos arbitrariamente uma origem de uma para a outra, sem qualquer seriedade e rigor científico.
O Evangelho, origem da veneração mariana
“Desde agora, todas as gerações me chamarão bem-aventurada!” (Lucas 1,48)
Estas foram as palavras da Virgem Maria, inspirada pelo Espírito Santo. Não há necessidade de buscar em outro lugar a veneração de Maria senão no cumprimento desta profecia atestada pela Escritura, e à qual muitos protestantes não conseguem dar cumprimento. Apesar disso, o Evangelho está repleto de passagens que atestam a bem-aventurança de Maria:
“No sexto mês, foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David; o nome da virgem era Maria. E entrando, disse-lhe: «Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo.»” (Lucas 1,26-28)
Santa Isabel, inspirada pelo Espírito Santo, refere-se à Virgem como a “Mãe do Senhor”:
“E de onde me é dado que a mãe do meu Senhor venha a mim?” (Lucas 1,43)
A palavra utilizada para “Senhor” em grego é “Kyrios”, termo com o qual a Bíblia Grega designa Yahveh, que é Deus dos deuses e Senhor dos senhores (Deuteronómio 10,17; Salmo 136,2-3), e que no Novo Testamento é atribuído unicamente a Cristo, deixando claro que O reconhece sem a menor dúvida como Deus. Por isso, quando Isabel chama Maria de “Mãe do meu Senhor”, está a chamá-la de “Mãe de Deus”.
Isabel, inspirada pelo Espírito Santo, também a chamou de “Bendita entre as mulheres”:
“E aconteceu que, assim que Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino saltou de alegria no seu ventre, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo; e exclamando com grande voz, disse: «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre.»” (Lucas 1,41-42)
Maria foi a primeira cristã crente da nova aliança:
“Disse Maria: «Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.»” (Lucas 1,38)
Foi aquela que praticaria a palavra de Deus, guardando-a no seu coração:
“Maria, por sua vez, guardava todas estas coisas e meditava-as no seu coração.” (Lucas 2,19)
O amor e a veneração a Maria devem-se ao facto de ser a mãe do Rei e Senhor, e, portanto, a Rainha. Não poderia ser de outra maneira, pois já no reinado de David, a rainha era sempre a mãe e tinha um trono ao lado do rei:
“Entrou Betsabé junto do rei Salomão para lhe falar acerca de Adonias. Levantou-se o rei, foi ao seu encontro e prostrou-se diante dela, e depois sentou-se no seu trono; puseram um trono para a mãe do rei, e ela sentou-se à sua direita. Ela disse: «Tenho de te fazer um pequeno pedido, não mo negues.» Disse o rei: «Pede, minha mãe, porque não to negarei.»” (1 Reis 2,19-20)
Tinha um título poderoso e prestigioso: GEBIRAH (“senhora”, “Grande Dama”) e até usava uma coroa:
“Dize ao rei e à Grande Dama: Humilhai-vos, sentai-vos, porque caiu das vossas cabeças a vossa preciosa diadema.” (Jeremias 13,18)
E por isso a mãe do rei ocupava um lugar especial e o seu nome era associado à tomada de poder deste:
“Roboão, filho de Salomão, reinou em Judá; tinha Roboão 41 anos quando começou a reinar, e reinou dezassete anos em Jerusalém, a cidade que Yahveh tinha escolhido de entre todas as tribos de Israel para nela estabelecer o seu Nome. O nome de sua mãe era Naamá, amonita.” (1 Reis 14,21)
“No décimo oitavo ano do rei Jeroboão, filho de Nebat, começou a reinar Abias sobre Judá. Reinou três anos em Jerusalém; o nome de sua mãe era Maacá, filha de Absalão.” (1 Reis 15,1-2)
A “Gebirah” é mencionada quase regularmente nas listas dos reis de Judá (exceto Jorão, Acaz e Asa).
E Jesus é o legítimo herdeiro do reinado de David, que transcenderia o mundo terrenal:
“Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai.” (Lucas 1,32)
Já no Antigo Testamento encontramos salmos proféticos a respeito da tomada de posse de Jesus do seu reino. Num desses salmos encontramos uma rainha vestida com ouro de Ofir, sentada à direita do Rei:
“Teu trono é de Deus para todo o sempre; um cetro de equidade é o cetro do teu reino; amas a justiça e odeias a impiedade. Por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo de alegria mais do que aos teus companheiros; mirra, aloés e cássia são todos os teus vestidos. Desde palácios de marfim, liras te deleitam. Filhas de reis estão entre as tuas preferidas; à tua direita está uma rainha, com o ouro de Ofir.” (Salmo 45,7-10)
“Toda esplêndida, a filha do rei entra, com vestidos ornados de ouro; com seus brocados é conduzida até o rei. Virgens a seguem, suas companheiras, e são introduzidas onde ele está; entre alegria e regozijo avançam, ao entrar no palácio do rei.
Em lugar dos teus pais, terás filhos; príncipes os farás sobre toda a terra. Que eu consiga tornar o teu nome memorável por todas as gerações, e os povos te louvem pelos séculos dos séculos!” (Salmo 45,14-18)
Daí que Maria, Filha de Sião por excelência, possa representar a figura da Igreja como sua rainha e mãe:
“por isso, desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada.” (Lucas 1,48)
Muitos protestantes temem tirar a glória de Deus para dá-la a Maria, quando, na verdade, trata-se de dar glória a Deus pelo que Ele fez nela.
A Bíblia revela-nos que Maria é a nova arca da aliança, por trazer em si a presença completa da Trindade:
“O anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso, aquele que há de nascer será santo e será chamado Filho de Deus.»” (Lucas 1,35)
O Pai: “…e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.”
O Filho: “…por isso, aquele que há de nascer será santo e será chamado Filho de Deus.”
O Espírito Santo: “O Espírito Santo virá sobre ti.”
Já no Génesis estava profetizada a inimizade entre a “Serpente” e a “Mulher”, cujo filho esmagaria a cabeça da serpente:
“Farei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela: ela te pisará a cabeça enquanto tu lhe feres o calcanhar.” (Génesis 3,15)
Profecia que se cumpriria em Maria, que, como nova arca da aliança, teria sua inimizade eterna com a serpente:
“E abriu-se o Santuário de Deus no céu, e apareceu a arca da sua aliança no Santuário, e produziram-se relâmpagos, estrondos, trovões, tremor de terra e uma forte tempestade de granizo.” (Apocalipse 11,19)
“Uma grande sinal apareceu no céu: uma Mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça.” (Apocalipse 12,1)
Ninguém melhor do que Maria, figura da Igreja, pode ostentar a coroa de 12 pontas (Rainha das doze tribos de Israel e dos doze Apóstolos).
Conclusão
O estudo objetivo da história revela que a veneração da Santíssima Virgem Maria não procede do paganismo, mas sim das reflexões cristológicas que permitiram ao povo de Deus aprofundar no lugar de Maria na economia da Salvação.
Notas de rodapé
- Martin Hengel, Studies in Early Christology, T. & T. Clark Publishers, Ltd., Junho 1995, p. 331
- Powell, Barry B. (2007). Classical Myth (5.ª ed.). Upper Saddle River: Pearson/Prentice Hall
- Plínio, Naturalis Historia ii.106 e xxxi.16; citado em Cotter, Wendy (1999). Miracles in Greco-Roman Antiquity: A Sourcebook. Londres, Nova Iorque: Routledge, p. 165