Fora da Igreja não há salvação

Extra Ecclesiam Nulla Salus é um dos dogmas que mais dificuldades apresenta em sua compreensão tanto para católicos quanto para não católicos, alguns dos quais pensam que o dogma já não tem vigência, enquanto outros o interpretam de maneira rigorista aplicando a sentença a aqueles que nunca ouviram o Evangelho.

Primeiramente tratarei a doutrina básica de acordo com a ensinança do Catecismo da Igreja Católica, mais adiante farei referência a algumas das definições dogmáticas do Magistério, e posteriormente resumirei brevemente as reflexões de teólogos, papas e doutores da Igreja.

Devido ao tema ser bastante extenso, não poderei abranger tudo o que gostaria e me limitarei a mencionar aquelas contribuições que considero mais importantes. No entanto, quem desejar aprofundar ainda mais, convido a consultar as seguintes obras, com as quais me documentei para desenvolver o presente resumo:

  • Francis A. Sullivan, ¿Hay salvación fuera de la Iglesia?, Desclée De Brouwer, S.A., 1999.
  • Prudencio Damboriena, La salvación en las religiones no cristianas, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid 1972

Explicação do dogma Extra Ecclesiam Nulla Salus no Catecismo da Igreja Católica

A ensinança da Igreja sobre esta verdade de fé é resumida no Catecismo da Igreja Católica da seguinte maneira:

“Fora da Igreja não há salvação”

846 Como entender esta afirmação tão frequentemente repetida pelos Pais da Igreja? Formulada de maneira positiva, significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça pelo meio da Igreja, que é o seu Corpo:

O Santo Sínodo… baseado na Sagrada Escritura e na Tradição, ensina que esta Igreja peregrina é necessária para a salvação. Cristo, de fato, é o único Mediador e caminho de salvação que se nos apresenta em seu Corpo, na Igreja. Ele, ao incutir, com palavras bem explícitas, a necessidade da fé e do batismo, confirmou ao mesmo tempo a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo batismo como por uma porta. Por isso, não poderiam se salvar aqueles que sabendo que Deus fundou, por meio de Jesus Cristo, a Igreja Católica como necessária para a salvação, no entanto, não tivessem querido entrar ou perseverar nela (LG 14).

847 Esta afirmação não se refere aos que, sem culpa sua, não conhecem a Cristo e a sua Igreja:

Aqueles que, sem culpa sua, não conhecem o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas buscam a Deus com sincero coração e tentam em sua vida, com a ajuda da graça, fazer a vontade de Deus, conhecida através do que sua consciência lhes diz, podem alcançar a salvação eterna (LG 16; cf DS 3866-3872).

848 “Embora Deus, por caminhos conhecidos apenas por Ele, possa levar à fé, ‘sem a qual é impossível agradá-Lo’ (Hb 11, 6), aos homens que ignoram o Evangelho sem culpa própria, corresponde, no entanto, à Igreja a necessidade e, ao mesmo tempo, o direito sagrado de evangelizar” (AG 7).

Definições do dogma por parte do Magistério da Igreja

O Papa Inocêncio III em 1208 impõe aos valdenses uma confissão de fé:

“Creemos de todo coração e professamos com nossos lábios uma única Igreja, não a dos hereges, mas a santa Igreja Romana, católica e apostólica, fora da qual acreditamos que ninguém pode ser salvo”1.

Quarto Concílio Lateranense em 1215 contra os albigenses define:

“E há uma única Igreja universal dos fiéis, fora da qual absolutamente ninguém é salvo.”2

O Papa Bonifácio VIII, em sua bula Unam Sanctam em 1302, escreve:

“Por imperativo da fé, estamos obrigados a crer e sustentar que há uma santa Igreja Católica e apostólica. Nós a cremos firmemente e abertamente a confessamos. Fora dela, não há salvação nem remissão dos pecados.”3

“Por conseguinte, declaramos, afirmamos, definimos e pronunciamos que se submeter ao Papa Romano é absolutamente necessário para a salvação de toda criatura humana.”4

O Concílio de Florença em 1442, em seu decreto para os jacobitas (profissão de fé para a reconciliação de vários grupos monofisitas), reitera:

“(A Igreja Romana) crê firmemente, confessa e prega que ninguém que esteja fora da Igreja Católica, não só pagão, mas também judeu ou herege ou cismático, poderá alcançar a vida eterna; pelo contrário, que irão para o fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos, a menos que antes de morrer sejam agregados a ela… E que por muitas esmolas que façam, mesmo que derramem seu sangue por Cristo, ninguém pode ser salvo, a menos que permaneçam no seio e na unidade da Igreja Católica.”5

O Papa Pio IV, em sua bula Iniunctum Nobis conhecida como a Profissão de Fé do Concílio de Trento (ano 1564), volta a repetir:

“…esta verdadeira fé católica, fora da qual ninguém pode ser salvo”.6

O Papa Pio IX, em sua alocução Singulari Quadam em 1854:

“Temos de admitir pela fé que ninguém pode ser salvo fora da Igreja Apostólica Romana; que ela é a única arca de salvação; quem não entrar nela, perecerá no dilúvio.”7

O mesmo Papa Pio IX, em sua encíclica Quanto Conficiamur Moerore em 1863:

“Bem conhecido também é o dogma católico, a saber, que ninguém pode ser salvo fora da Igreja Católica.”8

Polêmica em torno do dogma

Por parte dos protestantes, este dogma é atacado a partir de várias frentes:

Alguns usam para atacar a infalibilidade papal, alegando que a doutrina católica neste ponto mudou substancialmente e é, portanto, contraditória. Objetam que primeiramente se sustentava que ninguém podia ser salvo fora da Igreja, e agora se diz o contrário.

Outros mais perspicazes que os anteriores entendem que o dogma não sofreu mudanças substanciais e, portanto, permanece inabalável. Rejeitam-no como uma pretensão arrogante da Igreja de monopolizar a salvação, que para eles é obtida através da “Fé Sola” em Cristo.

Por parte dos tradicionalistas, há tendências que, se aferrando à interpretação rigorista do dogma, entendem-no de forma literal e absoluta, excluindo da salvação aqueles que, por ignorância invencível, nunca chegaram a ouvir o Evangelho. Alguns, caindo no sedevacantismo, chegam ao extremo de apontar herético o Concílio Vaticano II e os Papas que o seguiram.

Por parte dos progressistas, o dogma é rejeitado como uma definição obsoleta e, caindo no indiferentismo religioso, consideram que todas as religiões são caminhos válidos de salvação.

Desenvolvimento ou evolução do dogma?

Agora, diante dos ataques tanto do protestantismo quanto de alguns tradicionalistas, alguém poderia ser tentado a pensar que, de fato, a Igreja Católica mudou substancialmente sua doutrina nesse ponto, pois algumas definições doutrinárias parecem não deixar lugar a exceções quando afirmam de forma tajante que ninguém se salva fora da Igreja, enquanto outras parecem indicar o contrário.

Não pode se falar aqui de que o dogma “evoluiu”, pois o próprio conceito evolução implica a transformação ou mudança de algo em outra coisa diferente. Aplicar este termo à doutrina cristã implicaria cair no relativismo de afirmar que algo que é verdade hoje pode deixar de ser amanhã, noção que foi rejeitada pelo Magistério9. O que a doutrina católica reconhece como legítimo é o desenvolvimento da doutrina cristã, o qual é definido como o crescimento em profundidade e clareza da compreensão das verdades da Divina Revelação, mas permanecendo imutável a substância no núcleo de cada doutrina.

En este sentido, o termo desenvolvimento difere da evolução no sentido de que, quando algo ou alguém se desenvolve, não muda substancialmente e não deixa de ser o que é. Imagine, por exemplo, um dinossauro que evolui para um animal atual, após evoluir já não pertence mais à mesma espécie e não é mais o que era, mas uma criança que se desenvolve e se torna um homem, apesar de diferente, ainda é o mesmo ser humano. O mesmo exemplo pode ser dado com uma semente que se torna uma árvore frondosa: apesar de diferente, ainda é o mesmo ser e mantém sua própria natureza10.

Neste sentido, o Concílio Vaticano I declara:

O sentido dos dogmas sagrados que a santa mãe Igreja uma vez declarou, deve ser mantido perpetuamente, e nunca se pode se afastar desse sentido, sob pretexto ou em nome de uma compreensão mais profunda. Cresça, pois, e progrida ampla e intensamente a inteligência, a ciência e a sabedoria de cada um como de todos, dos particulares como da Igreja universal, de acordo com o grau próprio de cada idade e de cada tempo: mas mantendo-se sempre o seu próprio género, isto é, no mesmo dogma, no mesmo sentido, na mesma sentença.”11

É necessário afirmar que não houve uma mudança substancial no dogma “fora da Igreja não há salvação”, mas antes de entrar de pleno no assunto, é oportuno citar a declaração Mysterium Ecclesiae de 1973, onde a Congregação para a Doutrina da Fé esclarece a distinção entre o substancial de uma verdade de fé e sua expressão histórica:

“As dificuldades (na transmissão da Revelação Divina pela Igreja) também surgem da condição histórica que afeta a expressão da Revelação. Em relação a esta condição histórica, deve-se observar em primeiro lugar que o significado das afirmações de fé depende em parte do poder expressivo da linguagem usada em um determinado momento histórico e em circunstâncias particulares. Mais ainda, às vezes acontece que alguma verdade doutrinária é expressa inicialmente de modo incompleto (mas não falso), e em um momento posterior, quando é considerada em um contexto mais amplo de fé ou de conhecimentos humanos, recebe uma expressão mais completa e perfeita.”12

A Igreja em relação à salvação nos tempos anteriores à vinda de Cristo

Se analisarmos o que os primeiros pais sustentavam a esse respeito, veremos que todos concordavam que Deus havia disposto meios para a salvação de todos na era pré-cristã, incluindo aqueles que não pertencem ao povo escolhido. Embora explicado de diferentes maneiras, sustentavam que aqueles que se salvavam o faziam através de Cristo. Aqui estão alguns trechos relevantes:

Justino Mártir (100-168 d.C.)

“Obviamente, cada um se salvará por sua própria justiça, disse também que os que viveram de acordo com a Lei de Moisés também serão salvos. Na Lei de Moisés, de fato, são dadas algumas coisas que são naturalmente boas, piedosas e justas, que devem fazer o que acreditam; outras, que os que estavam sob a lei praticavam, estão escritas com o objetivo da dureza do coração do povo. Portanto, aqueles que cumpriram o que é universal, natural e eternamente bom, foram agradáveis a Deus e serão salvos por meio de Cristo na ressurreição, da mesma forma que os justos que os precederam, Noé, Enoque, Jacó e tantos outros, juntamente com aqueles que reconhecem este Cristo como Filho de Deus.”13

“Alguns, sem razão, para rejeitar nossa ensinança, podem nos objetar que, dizendo que Cristo nasceu há apenas cinquenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde, no tempo de Pôncio Pilatos, os homens que o precederam não têm responsabilidade alguma. Vamos antecipar a resolução desta dificuldade. Recebemos a ensinança de que Cristo é o primogênito de Deus e, anteriormente, indicamos que Ele é o Verbo, de quem toda a humanidade participou. E assim, aqueles que viveram de acordo com o Verbo são cristãos, mesmo que tenham sido considerados ateu, como aconteceu entre os gregos com Sócrates e Heráclito e outros semelhantes, e entre os bárbaros com Abraão, Ananias, Azarias e Misael, e muitos outros cujos feitos e nomes seria longo enumerar por enquanto.”14

Clemente de Alexandria (150 – 217 d.C.)

“Deus cuida de todos, pois é o Senhor de todos e é o Salvador de todos; não se pode dizer que é o Salvador de uns e não de outros. Como cada um se dispôs a recebê-la, Deus distribuiu sua bênção tanto para os gregos quanto para os bárbaros e, em seu momento, chamou os que estavam predestinados a estar entre os fiéis escolhidos.”15

Orígenes (185 – 254 d.C.)

“Então agora, depois de tantos séculos, Deus decidiu julgar a vida humana e nada importou antes? Para isso, diremos que nunca houve um tempo em que Deus não quisesse julgar a vida humana, mas sempre cuidou disso, dando oportunidades para praticar a virtude para a correção da alma racional. E é assim que, em todas as gerações, descendo a sabedoria de Deus para as almas que encontra santas, faz amigos de Deus e profetas.”16

Juan Crisóstomo (347 – 407 d.C.)

“Por isso, quando os pagãos nos colocarem esta objeção: O que Cristo estava fazendo quando não estava se preocupando com a espécie humana? Por que depois de nos ter esquecido por muito tempo, veio nos trazer a salvação apenas no final dos tempos?, responderemos que Ele estava no mundo antes de sua vinda entre os homens, pensando nas obras que iria realizar desde a eternidade e era conhecido por todos aqueles que eram dignos de conhecê-Lo.

E se então você diz que não era conhecido, pois não era conhecido por todos, mas apenas pelos homens virtuosos e probos, por essa mesma razão deveria dizer que também agora não é adorado pelos homens, pois muitos deles não têm notícia dele.”17

Agustín de Hipona (354 – 430 d.C.)

“Portanto, desde o início da espécie humana, aqueles que nele acreditaram, aqueles que de alguma forma o entenderam e viveram de forma justa e piedosa de acordo com seus preceitos, por ele foram salvos sem dúvida alguma, onde quer que tenham vivido… Dessa forma, a saúde dessa religião, por meio da qual exclusivamente, verdadeira e verazmente se promete a verdadeira salvação, não faltou a ninguém que fosse digno dela. E se alguém lhe faltou, ele não era digno de recebê-la.”18

Em relação à salvação dos não cristãos nos primeiros três séculos

No entanto, já na era cristã, encontramos uma situação diferente, onde a Igreja instituída obedece o mandato de Jesus de pregar o Evangelho a todas as nações:

“Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem acreditar e for batizado, será salvo; quem não acreditar, será condenado.” (Marcos 16,16)

As palavras de Cristo sentenciam a condenação para aqueles que, recebendo a mensagem evangélica, a rejeitam afastando-se da verdade. É neste contexto que encontramos os textos dos primeiros pais, São Ignácio de Antioquia, São Irineu de Lyon, Orígenes e São Cipriano, nos quais se fala de pessoas excluídas da salvação por estarem fora da Igreja, mas uma examinação cuidadosa dos textos e seu contexto revela que se referiam a aqueles a quem julgavam culpados de separação, especificamente por pecados de heresia ou cisma. Não é possível encontrar qualquer referência a aqueles que não haviam recebido a mensagem.

Ignácio de Antioquia (? – 107 d.C.)

“Não vos enganeis, irmãos meus: se alguém segue aquele que se separa, não herdará o reino de Deus. Aquele que anda em sentença alheia, esse não se conforma à Paixão.”19

Ireneu de Lyon (130 – 202 d.C.)

“Na Igreja, Deus estabeleceu Apóstolos, Profetas, mestres e todos os outros dons do Espírito, que não são compartilhados por aqueles que não se apressam para a Igreja, mas sim se excluem da vida por uma mente perversa e um modo de agir ainda pior. Porque onde está a igreja, está o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, está a igreja e toda graça.”20

Orígenes (185 – 254 d.C.)

“Então, ninguém se persuada, ninguém se engane: fora desta casa, isto é, fora da igreja, ninguém é salvo. Se alguém sair, é responsável por sua própria morte.”21

Cipriano de Cartago (200 – 258 d.C.)

“Que no piensen que el camino de la vida o la salvación existe para ellos, si han rehusado obedecer a los obispos y presbíteros, dado que el Señor dice en el libro del Deuteronomio: ‘Si alguno procede insolentemente, no escuchando al sacerdote ni al juez, ese hombre morirá’. Y entonces se les mataba con la espada…pero ahora, los orgullosos e insolentes son muertos con la espada del Espíritu cuando son arrojados fuera de la Iglesia. Porque no pueden vivir fuera, ya que sólo hay una casa de Dios, y no puede haber salvación para nadie si no es en la Iglesia.”22

“Y no puede servir para la salvación al hereje ni el bautismo de la confesión pública ni el de sangre, porque no hay salvación fuera de la Iglesia.”23

“Quién separándose de la Iglesia, se une a una adúltera, se separa de las promesas de la Iglesia, y no alcanza los premios de Cristo quien abandona su Iglesia. Éste se convierte en un extraño, un sacrílego y un enemigo. No puede ya tener a Dios por padre quien no tiene a la iglesia por madre.”24

“Enquanto ainda estiver neste mundo, nunca é tarde demais para se arrepender. Mesmo nas portas da morte, você pode pedir perdão pelos seus pecados, recorrendo ao único verdadeiro Deus. Pois a bondade de Deus concede a absolvição para a salvação do crente, para passar da morte à imortalidade. É Cristo quem concede esta graça.”25

Respeito à salvação de não-cristãos a partir do século IV

No século IV, a situação da Igreja começa a mudar. A perseguição aos cristãos termina com os edictos dos imperadores Galerius (311) e Constantino (313), e o cristianismo é declarado pelo imperador Teodósio I26 como a religião oficial do império.

A condenação de cristãos cismáticos por se colocarem voluntariamente fora da Igreja também é aplicada aos judeus e pagãos, em um contexto em que se supõe que, até essa época, o mensagem do Evangelho havia sido proclamado em todo o mundo conhecido e todos tiveram suficientes oportunidades para aceitá-lo. A avaliação negativa baseava-se aqui na premissa de que todos haviam sido pregados o mensagem cristão de maneira suficiente para ser capazes de compreender a verdade, por isso aqueles que se recusavam a aceitá-la estavam voluntariamente se excluindo do reino de Deus.

Que alguns fossem excluídos da salvação não era considerado, em nenhum caso, um propósito arbitrário de Deus. Aqueles que se condenavam não era porque Deus quisesse que eles não se salvavam, mas porque eles haviam rejeitado os meios que Deus havia colocado à sua disposição para isso.

Ambrosio de Milão (340 – 397 d.C.)

Se alguém não crê em Cristo, priva-se de seus benefícios universais, como se alguém negasse a entrada dos raios do sol fechando sua janela. Porque a misericórdia do Senhor foi derramada pela Igreja em todas as nações; a fé foi distribuída a todas as pessoas.”27

João Crisóstomo (347 – 407 d.C.)

“Não se deve acreditar que a ignorância desculpe os não-crentes… Quando você é ignorante do que pode ser facilmente conhecido, deve sofrer o castigo… Quando fazemos tudo o que está ao nosso alcance, em matérias que desconhecemos, Deus nos estenderá a mão; mas se não fizermos o que podemos, não usufruiremos da ajuda de Deus… Então não digam: ‘Como é que Deus abandonou esse pagão sincero e honesto?’. Você perceberá que ele não foi realmente diligente na busca da verdade, pois o que diz respeito à verdade está agora mais claro que o sol. Como obterão perdão aqueles que, vendo a doutrina da verdade derramada diante deles, não se esforçam para conhecê-la? Porque agora o homem de Deus é proclamado a todos… É impossível que alguém que esteja atento na busca da verdade seja desprezado por Deus.”28

A influência de Agostinho de Hipona

Apesar de Santo Agostinho reconhecer a possibilidade de salvação para os não cristãos pela fé implícita em Deus nos tempos anteriores à vinda de Cristo, ele foi rigoroso em relação à impossibilidade de salvação desses nos tempos do Novo Testamento.

Sabemos que Santo Agostinho conhecia a existência de tribos e povos na África fora dos limites do império romano que nunca haviam recebido a pregação29. A esses não poderia ser atribuída a responsabilidade de terem colocado-se “culposamente” fora da Igreja, pelo que era de se esperar que o santo usasse o mesmo critério que aplicou a aqueles que viveram antes da vinda de Cristo. No entanto, ele exclui a possibilidade de salvação para eles, primeiro sustentando que, se Deus negava a fé a alguém, era porque previa que, se lhe fosse oferecida, essa pessoa a rejeitaria, e posteriormente alegando que, pela pena contraída pelo pecado original, era suficiente para justificar a Deus na condenação, não apenas de crianças que morrem sem o batismo, mas também de adultos que morrem na ignorância da fé cristã.

Ele não conseguiu encontrar nenhuma solução quanto à possibilidade de salvação de aqueles que morrem sem o batismo e fora da Igreja, mas ainda assim não se poderia criticá-lo por aquilo que só seria plenamente esclarecido pelo desenvolvimento teológico posterior.

Os discípulos de Agostinho

Entre os diversos discípulos de Agostinho, havia aqueles que se posicionaram em sua mesma linha e aqueles que souberam se afastar nesses pontos problemáticos.

Um que seguiu sua linha foi São Fulgêncio, bispo da cidade de Ruspe (no norte da África), que, por se ater demais a esses pontos com Santo Agostinho, chegou ao extremo de negar a vontade salvífica universal de Deus de acordo com a qual Ele quer que todos os homens sejam salvos:

“Se for verdade que Deus quer universalmente que todos se salvem e venham ao conhecimento da verdade, como é que essa Verdade escondeu alguns homens o mistério de seu conhecimento? Certamente, aos que negou tal conhecimento, também nega a salvação… Portanto, Ele quis salvar aqueles a quem deu o conhecimento do mistério da salvação e não quis salvar aqueles a quem negou o conhecimento do mistério salvífico. Se tivesse querido a salvação de ambos, teria concedido o conhecimento da verdade aos dois.”30

No entanto, outro de seus discípulos, São Próspero de Aquitânia, mostrou-se capaz de discernir entre a doutrina essencial de Agostinho sobre a primazia da graça e algumas das consequências que ele acreditava derivarem desse princípio. Portanto, afirma, ao contrário de São Fulgêncio, que Deus quer que todos os homens sejam salvos, ao mesmo tempo em que admite que o caso de crianças que morrem sem o batismo ainda é um mistério insolúvel para ele, deixando a misericórdia de Deus.

Em relação ao problema de aqueles que morrem como não crentes por nunca terem ouvido o Evangelho, ele escreve:

“Não há razão para duvidar de que Jesus Cristo, Nosso Senhor, morreu pelos não crentes e pecadores. Se houvesse alguém que não pertencesse a esses, então Cristo não teria morrido por todos. Mas Ele morreu por todos os homens sem exceção…”31

“Pode ser verdade que, assim como sabemos que em tempos antigos alguns não foram admitidos na dignidade de filhos de Deus, também hoje, nas partes mais remotas do mundo, há algumas nações que ainda não viram a luz da graça do Salvador. Mas não temos dúvida de que, no designio escondido de Deus, foi estabelecido também para eles um momento de chamada, em que ouvirão e aceitarão o Evangelho que agora lhes é desconhecido. Mesmo agora, recebem essa quantidade de ajuda geral que os céus sempre concederam a todo homem.”32

“…acreditamos com total confiança na bondade de Deus que ‘quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’. Devemos sustentar isso como sua vontade imutável desde a eternidade, que se manifesta nos diversos graus em que Ele, em sua sabedoria, escolhe aumentar seus dons gerais com favores especiais.”33

São Tomás de Aquino

São Tomás, assim como os teólogos medievais, considerava que o caso de alguém que não teve oportunidade de ouvir o Evangelho era algo excepcional, por isso para ele um caso assim teria que ser como o de uma criança criada na selva ou entre os animais. Para esse tipo de caso, afirma que Deus não deixaria uma pessoa sem os meios necessários para sua salvação sempre que ela fizesse tudo o que estiver ao seu alcance com a graça recebida, para que assim possa, antes de finalizar sua vida, chegar a uma fé explícita:

“Se se fala de que o homem pode algumas coisas sem o auxílio da graça, está obrigado a muitas coisas que não pode realizar sem a ajuda da graça reparadora, por exemplo, amar a Deus e o próximo, e igualmente crer nos artigos da fé. Mas tudo isso pode fazer com o auxílio da graça. Este auxílio da graça, a quantos é dado divinamente, é dado por misericórdia; mas a quem é negado, é negado por justiça, em castigo de algum pecado anterior, pelo menos do pecado original, como afirma São Agostinho em De corrept. et gratia.”34

O descobrimento do Novo Mundo e o aumento da reflexão teológica sobre o dogma

Com o descobrimento da América, os teólogos se questionam se os casos de aqueles que não ouviram o Evangelho são tão poucos ou tão excepcionais quanto poderiam pensar, pois estavam diante de uma situação em que incontáveis pessoas viviam sem conhecer o Evangelho, sem culpa própria, há mais de 1500 anos.

A solução apresentada até então por Santo Tomás não era suficientemente satisfatória, pois era muito difícil conciliar como populações inteiras de um continente, sem nunca ouvir uma pregação, poderiam chegar a uma fé explícita. É aqui que Melchor Cano O.P35., ainda seguindo a linha de Santo Tomás, vai um passo além e chega à conclusão de que, para aquelas pessoas de bom coração que colaboravam com a graça que recebiam, era suficiente fazer um ato de fé implícito como descrito em Hebreus 11,6. Uma solução semelhante foi defendida por Domingo de Soto O.P.36.

O protestantismo, alheio ao dogma, mas professando que ninguém podia se salvar sem confessar sua fé em Cristo, havia resolvido a situação dos nativos americanos que morreram sem ouvir o Evangelho de maneira muito mais simples: todos para o inferno. Para João Calvino, por exemplo, Deus havia predestinado a condenação eterna para aqueles que estavam privados do conhecimento do Evangelho. Se Deus não lhes concedeu a revelação, era porque os havia abandonado à sua maldade, e ninguém podia questionar isso porque era parte do “designio inescrutável” de Deus. É neste contexto que Albert Pigge, opondo-se ao rigorismo calvinista, afirma que a providência de Deus fixa diferentes tempos para a promulgação do Evangelho aos diferentes grupos de pessoas e fornece a todos os meios para se salvarem.

“Isto é completamente verdadeiro: é impossível estabelecer o mesmo tempo pelo qual se pode dizer, ou poderia se dizer nunca, que o Evangelho foi suficientemente promulgado para todo o mundo. Porque Deus não determinou o mesmo tempo para a chamada de todas as nações. Dado que até mesmo agora, em muitas regiões do mundo, há muitas nações onde a luz do Salvador ainda não brilhou, e um número cada vez maior aos quais essa luz está apenas começando a iluminar através dos missionários. Não há dúvida de que essas pessoas estão nas mesmas condições em que estava Cornélio antes de ser instruído na fé por Pedro.”37

A contribuição de Roberto Belarmino

São Roberto Belarmino38 abordou o caso de pessoas que nunca ouviram o Evangelho, explicando que o designio salvífico universal de Deus proporciona a todo o mundo a possibilidade de se salvar, pelo menos em algum momento e lugar.

“Dizemos ‘em algum momento ou lugar’, porque não determinamos se essa ajuda é acessível a qualquer momento da vida de uma pessoa… Dizemos que não há ninguém que não receba, em algum momento, essa ajuda. Depois dizemos ‘mediata ou imediatamente’ porque acreditamos que aqueles que têm uso da razão recebem inspirações santas de Deus, e assim, sem outra mediação, têm graça capacitante, e se cooperam com ela, podem se disposicionar para a justificação; e, finalmente, chegar à salvação.”39

“As pessoas que ainda não foram pregadas o Evangelho podem conhecer a existência de Deus pelas criaturas, e assim podem ser movidas pela graça preveniente para acreditar que Deus existe e recompensa aqueles que o buscam, e a partir dessa fé podem então ser levadas por Deus, que os guia e ajuda, em orações e obras de caridade, e desta forma podem obter, através da oração, uma maior luz de fé, que Deus facilmente lhes comunicará, por si mesmo, ou através da mediação de homens ou anjos.”40

Uma solução semelhante foi defendida por Francisco Suárez41

Desenvolvimento do conceito de ignorância invencível até o Concílio Vaticano II

Assim começa a se desenvolver na Igreja a consciência de que há muitos que estão em um determinado estado em que não podem ser considerados culpados por sua separação da Igreja Católica.

A contribuição de Juan de Lugo S.J.

Embora De Lugo42 sustentasse, essencialmente, a mesma coisa que Belarmino e Suárez, desenvolveu mais além o conceito de ignorância invencível aplicando-o não apenas a aqueles que nunca ouviram o Evangelho, mas também a quem o Evangelho não havia sido pregado de maneira eficiente para movê-los eficazmente à conversão. Ele distingue entre a situação do herege que se afasta da Igreja por sua pertinácia daquele que nasce dentro de um cisma ou em alguma seita herética e que não teve maneira de perceber que está no erro.

“Aquellos que no creen con la fe católica pueden dividirse en diversas categorías. Hay algunos que, aunque no creen todos los dogmas de la religión católica, reconocen al único Dios verdadero; estos son los Turcos y todos los musulmanes, así como los judíos. Otros reconocen al Dios trino y a Cristo, como hacen la mayoría de los herejes…Ahora bien, si esas personas están excusadas del pecado de infidelidad por ignorancia invencible, pueden salvarse.” 43

“Alguien que es bautizado siendo niño por herejes, y es criado por ellos en una falsa doctrina, cuando alcanza la edad adulta, podría no ser culpable durante un tiempo de pecado contra la fe católica, dado que no le ha sido presentada en una forma suficiente como para obligarle a aceptarla. Sin embargo, si la fe católica le fuera propuesta posteriormente de una manera suficiente como para obligarle a su aceptación, y a abandonar los errores contrarios a ella, y él todavía persistiera en su error, entonces sería hereje.”44

Giovanni Perrone, S.J.

A contribuição de Giovanni Perrone45 é semelhante às anteriores, ao reafirmar, por um lado, o dogma, mas, por outro, enfatizar que ele se refere a aqueles que estão culpablemente em estado de separação da Igreja.

“Para aqueles que morrem em um estado culpável de heresia, cisma ou incerteza, não pode haver salvação; em outras palavras, não é possível obter a salvação fora da Igreja Católica. Então, como se deduz da forma como a proposição é enunciada, falamos apenas de aqueles que estão culpablemente em estado de heresia, cisma ou incerteza.

Em outras palavras, falamos apenas de sectários formais, não apenas materiais. Os últimos são por terem sido criados desde a infância em erros e preconceitos, e não suspeitam de que estão realmente em heresia ou cisma, ou se tal suspeita surge em suas mentes, buscam a verdade com todo o coração e com mente sincera. Deixemos tais pessoas ao julgamento de Deus, porque ele é o que vê dentro e examina os pensamentos e os caminhos do coração. Porque a bondade e a misericórdia de Deus não permitem que ninguém que não é culpado de uma falha deliberada sofra tormentos eternos no inferno. Afirmar o contrário estaria em desacordo com a ensinamento explícito da Igreja.”46

Pertence à divina providência oferecer meios suficientes para a salvação de todos os homens. Em virtude do fato de que Deus quer que todos os homens sejam salvos e que ninguém pode ser salvo sem fé, Deus concede a todos que não colocam obstáculo – e às vezes até mesmo aos que o fazem, porque essa graça não é merecida – por sua misericórdia, e em virtude dos méritos de Cristo, seja uma iluminação sobrenatural interna ou revelação, ou faz com que recebam instrução de outros sobre a fé: e dessa forma podem ser justificados e salvos. Além disso, este modo de agir de Deus não deve ser considerado como milagroso, porque pertence à providência sobrenatural ordinária de Deus.”47

O Papa Pio IX

O testemunho do Papa Pio IX é importante, pois, como já mencionado em sua alocação Singulari quadam de 1854, ele também afirmou que “ninguém pode se salvar fora da Igreja”, mas, na mesma alocação, esclarece e acrescenta que Deus não condena os inocentes que nunca ouviram a mensagem do Evangelho, razão pela qual a expressão “Extra Ecclesiam Nulla Salus” não se refere a eles. Ao mesmo tempo, combate o indiferentismo religioso, sob o qual se acreditava que todas as religiões eram caminhos de salvação, bem como o rigorismo que excluía da salvação aqueles que, sem culpa própria, estavam separados da Igreja:

“Sem pesar, temos sabido que outro erro, não menos prejudicial, tomou posse de algumas partes do mundo católico e entrou nas mentes de muitos católicos que acreditam que podem esperar a salvação eterna de todos aqueles que de nenhuma maneira viveram na verdadeira Igreja de Cristo. Por essa razão, estão acostumados a perguntar frequentemente qual será o destino e a condição de aqueles que nunca se dedicaram à fé católica e, guiados por razões absurdas, esperam uma resposta que favoreça sua opinião depravada. Longe de nós tentarmos estabelecer limites à misericórdia de Deus, que é infinita. Longe de nós querermos escrutar os conselhos e julgamentos escondidos de Deus, que são “um abismo imenso” que o pensamento humano nunca pode penetrar. De acordo com nosso dever apostólico, desejamos incentivar vossa solicitude e vigilância episcopal para afastar das mentes dos homens, até o ponto em que sejais capazes de usar todas vossas energias, essa ideia impia e prejudicial: que o caminho da salvação eterna pode ser encontrado em qualquer religião. Com toda a habilidade e o conhecimento à nossa disposição, deveríeis provar às pessoas confiadas a vossa guarda que os dogmas da fé católica não se opõem de forma alguma à misericórdia e justiça divinas. Certeza, devemos manter que é parte da fé que ninguém pode ser salvo fora da Igreja apostólica Romana, que é a única arca de salvação e quem não entra nela vai perecer no dilúvio. Mas, no entanto, devemos da mesma forma defender como certo que aqueles que se empenham na ignorância da fé verdadeira, se essa ignorância é invencível, nunca serão acusados de nenhuma culpa por isso diante dos olhos do Senhor. Quem é que lançaria o poder de apontar a extensão de tal ignorância de acordo com a natureza e variedade de povos, religiões, talentos e tantas outras coisas?”48

Posteriormente, nove anos depois, o Papa trata o mesmo tema em uma encíclica dirigida a todos os bispos da Itália:

“Devemos mencionar e repreender novamente um erro muito grave no qual alguns católicos, infelizmente, caíram, acreditando que os homens que vivem no erro e totalmente afastados da verdadeira fé e da unidade católica podem alcançar a vida eterna. Isso é absolutamente oposto à doutrina católica. É conhecido por nós e por vocês que aqueles que se esforçam em ignorância invencível sobre nossa muito santa religião e que, observando constantemente a lei natural e seus preceitos que Deus escreveu nos corações de todos, e estando dispostos a obedecer a Deus, viver uma vida honesta e honrada podem, através da ação da luz divina e da graça, alcançar a vida eterna, pois Deus, que vê claramente, escruta e conhece a mente, as intenções, os pensamentos e os hábitos de todos, por causa de sua suprema bondade e misericórdia, nunca permite que ninguém que não é culpado de pecado deliberado seja punido nos sofrimentos eternos. Mas também é dogma católico perfeitamente conhecido que ninguém pode se salvar fora da Igreja Católica, e aqueles que são contumazes contra a autoridade e as definições da mesma Igreja, e que estão pertinazmente separados da unidade dessa Igreja e do sucessor de Pedro, o Papa Romano, a quem foi confiada a guarda da vinha pelo Salvador, não podem obter a salvação eterna.”49

O Papa Pio XII, em sua encíclica Mysticy Corporis, reconhece a possibilidade de salvação para aqueles que estavam inculpáveis ​​fora da Igreja:

O Papa Pio XII

“Exortamos a todos e cada um a estarem prontos a seguir os movimentos internos da graça e a buscar com maior seriedade libertar-se de um estado em que não podem ter certeza de sua própria salvação. Pois, apesar de, por um certo desejo inconsciente, poderem se relacionar com o Corpo Místico do Redentor, permanecem privados de tantos e tão poderosos dons e auxílios do Céu, que só podem ser desfrutados dentro da Igreja Católica.”50

Nesse texto, o Papa enfatiza que “não podem ter certeza” de sua salvação (o que não afirma nem nega que possam ser salvos), enquanto fala sobre como podem se relacionar com o corpo místico de Cristo por um “certodesejo inconsciente”, de maneira semelhante ao que já afirmara em o século XVI o Santo Roberto Belarmino.

O caso de Leonard Feeney

No final dos anos 40, surge uma controvérsia quando o padre Leonard Feeney denuncia o arcebispo Richard Cushing por heresia por declarar que os não católicos podiam se salvar. O padre Feeney interpretava de maneira rigorista o dogma e, após acusar o bispo, ele recorre a Roma para obter uma interpretação autorizada. A seguir, os trechos mais relevantes da resposta do Santo Ofício:

“Entre as doutrinas que a Igreja sempre pregou e nunca deixará de pregar, deve-se incluir aquela afirmação infalível que nos ensina que ‘fora da Igreja não há salvação’. Mas este dogma tem que ser entendido no sentido em que a própria Igreja o entende. Porque nosso salvador não confiou o depósito da fé à mercê de interpretações privadas, mas ao magistério da Igreja…

Logo, ninguém poderá ser salvo sabendo que Cristo fundou a Igreja por um ato divino e, mesmo assim, se recusa a se submeter a ela ou nega a obediência ao Papa, o vice-cristo na terra…

Porque, para obter a salvação eterna, nem sempre é exigida a incorporação efetiva (reapse) à Igreja como membro; mas é necessário, pelo menos, aderir a ela pelo “voto” e desejo (voto et desiderio). Mas nem sempre é necessário que este desejo seja explícito, como os catecúmenos têm; pelo contrário, no caso em que o homem tem uma ignorância invencível, Deus também aceita o desejo implícito. E é chamado assim porque está contido naquela boa disposição da alma pelo qual o homem quer que sua vontade se conforme à de Deus.

Estas coisas são claramente ensinadas pelo Sumo Pontífice Pio XII em sua carta doutrinária sobre o Corpo Místico de Cristo… No final da encíclica, quando com todo o seu coração convida à união todos aqueles que não pertencem ao corpo da Igreja Católica, o Papa menciona aqueles ‘que são ordenados ao Corpo Místico de Cristo por algum tipo de desejo’. De maneira alguma exclui esses homens da salvação eterna, mas, por outro lado, destaca que eles estão em um estado “em que não podem estar seguros de sua própria salvação…”

Com essas palavras prudentes, repreende tanto aqueles que excluem da salvação eterna todos aqueles que se unem à Igreja com apenas um desejo implícito, quanto aos outros que falsamente asseguram que os homens se salvam em qualquer religião da mesma maneira. Mas não devemos pensar que qualquer desejo de entrar na Igreja basta para se salvar. Porque é necessário um desejo que esteja informado com uma caridade perfeita. O voto ou desejo implícito não pode produzir seu efeito a não ser que o homem possua a fé sobrenatural.”51

Conclusões

Todo o desenvolvimento teológico anterior levou à ensinança atual contida no Concílio Vaticano II e resumida no Catecismo. O núcleo da ensinança, embora tenha sido expressado de diversas maneiras de acordo com os diferentes contextos históricos, sempre enfatizou a necessidade da Igreja para a salvação, assim como a vontade salvífica universal de Deus que quer que todos os homens sejam salvos. Tudo isso, é claro, rejeitando tanto o indiferentismo religioso para o qual todas as religiões são caminhos de salvação, bem como o rigorismo que pretende excluir terminantemente a possibilidade de salvação para aqueles que, sem culpa própria, não conhecem Cristo ou sua Igreja.

Notas de rodapé

  1. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion symbolorum, definitionum, declarationum, edição n.34, ano 1967, 792
  2. Ibid., 802
  3. Ibid., 870
  4. Ibid, 875
  5. Ibid., 1351
  6. Ibid., 1870
  7. Ibid., 2865
  8. Ibid., 2867
  9. O Papa Pio X ordenou ao clero um juramento antimodernista no qual se pediu para declarar “Rejeito de plano a ficção herética da evolução dos dogmas, de acordo com a qual eles poderiam passar de um sentido para outro diferente, diferente do primeiro proferido pela Igreja” (Denzinger-Schönmetzer 3541)
  10. É possível usar o termo “evolução” especificando que é uma evolução no mesmo sentido, e não uma evolução transformista. Muito recomendável nesse sentido é a obra do padre Francisco Marín Solá intitulada “A evolução homogênea do dogma católico”.
  11. Op. cit. Denzinger-Schönmetzer 3020
  12. Acta Apostolicae Sedis 65, 1973, 402-403
  13. Justin Martyr, Diálogo com Trigon, 45,3
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apologetas Griegos, Biblioteca de Autores Cristianos 116, Terceira Edição, Madrid 1996, p. 375-376.
  14. Justin Martyr, Apologia I, 46,1-3
    Ibid., p. 232-233
  15. Clemente de Alejandría, Stromata 7,2
    New Advent Encyclopedia, http://www.newadvent.org/fathers/02107.htm
  16. Contra Celsum 4,7
    New Advent Encyclopedia, http://www.newadvent.org/fathers/04164.htm
  17. Juan Cristóstomo, In Ioannem hom. 8; pg 59,67-68
    New Advent Encyclopedia, http://www.newadvent.org/fathers/240108.htm
  18. Agostinho de Hipona, Carta 102,12.15.
    Obras Completas de San Agustín, Volume VIII, Biblioteca de Autores Cristianos 69, Madrid 1986, p. 719 e 722.
  19. Inácio de Antioquia, Carta aos Filadélfios 3,3
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, Biblioteca de Autores Cristianos 65, Quinta Edição, Madrid 1985, p. 483.
  20. Ireneu de Lião, Contra Heresias 3,24,1
  21. Orígenes, Homiliae in Jesu Nave 3,5 pg. 12, 841-842
  22. Cipriano de Cartago, Carta 4,4; Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum 3,2: 476-477
  23. Cipriano de Cartago, Carta 73,21; Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum 3,2; 795
  24. Cipriota de Cartago, A Unidade da Igreja, 6,77. AWC 25,48-49
  25. Citado de M. Bévenot, Salus extra ecclesiam non est (S. Cipriano), en Fides Sacramenti, Sacramentum Fidei. Ed. H.J. Auf der Maur, Assen 1981, pág. 105
  26. Teodósio I foi imperador do império romano de 379 até 395.
  27. Ambrosio de Milão, In Psalm 118 Sermo 8,57; Migne Patrología Latina, 15, 13-18
  28. João Crisóstomo, In Epíst. Ad. Rom. Hom. 26,3-4; p. 60, 641-642.
  29. Ele escreve a esse respeito: “Há entre nós, aqui mesmo na África, inúmeros povos bárbaros nos quais ainda não foi pregado o Evangelho. Podemos comprová-lo todos os dias pelos prisioneiros que os romanos tomam e reduzem à servidão”. Carta 199,12.46 Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum 57, 284
  30. Fulgêncio de Ruspe, De veritate praedestinationis 3,16-18. Migne Patrología Latina, 65, 660-661
  31. Próspero da Aquitânia, De vocatione 2,16.
    Migne Patrología Latina, 51, 702-703
  32. Próspero da Aquitânia, De vocatione 2,17.
    Ibid., 51, 704
  33. Próspero da Aquitânia, De vocatione 2,18.
    Ibid.,51, 706
  34. Tomás de Aquino, Summa Theologica II-IIae, q.2, a.5, ad 1
  35. Melchor Cano O.P. (1509 – 1560), foi um frade dominicano, teólogo e bispo das Ilhas Canárias.
  36. Domingo de Soto O.P. (1494-1570) era um teólogo dominicano espanhol.
  37. Albert Pigge, De Libero hominis arbitrio, lib. X. fol 180 v-181r.
  38. Roberto Berlarmino foi Arcebispo, Cardeal e Inquisidor jesuíta.
  39. Roberto Belarmino, De Gratia et libero arbitrio, lib. 2. Cap 5; ed.Giuliano, vol. 4, 301
  40. Ibid., vol. 4, 308
  41. Francisco Suárez (1548-1619) foi um reconhecido teólogo jesuíta.
  42. João de Lugo (1583-1660) foi cardeal e teólogo. Ele nasceu em 1583 e morreu em 1660.
  43. João de Lugo S.J., De virtute fidei divinae, disp. 12, n.50-51
  44. Ibid, disp. 20, n. 149
  45. Giovanni Perrrone (1794- 1876) era um teólogo italiano.
  46. Giovanni Perrone, S.J., De vera religione, pars II. Prop. XI. n.265, en Praelectiones theologicae, vol. I, ed. 34, Torino: Marietti, 1900. p. 214
  47. Giovanni Perrone, De virtutibus fidei spei et caritatis; De fide, n. 321, p. 115
  48. Pio IX, Singulari quadam, Acta Pii IX, I/I, p. 626.
  49. Pio IX, Quanto conficiamur moerore, Acta Pii IX I/3, pág. 613
  50. Pio XII, Mystici corporis, n. 101
  51. Carta do Santo Ofício ao Arcebispo Cushing, ano de 1949.
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