Algumas denominações protestantes de origem adventista defendem que a Igreja cristã apostatou ao substituir o sábado pelo domingo como o Dia do Senhor. Alegam que os primeiros cristãos guardavam o sábado, mas que, após a conversão do imperador Constantino no século IV, este teria mudado o dia de repouso do sábado para o domingo, tornando o cristianismo mais aceitável para os pagãos, que nesse dia adoravam o Deus Sol. No entanto, como veremos a seguir, isso não é verdade.
A observância do sábado no Novo Testamento
O dia da ressurreição de Cristo (o domingo) foi, para os primeiros cristãos, o cumprimento da palavra profética de um Salmo do Antigo Testamento, no qual o Messias, rejeitado por seu próprio povo, se tornaria a pedra angular da Igreja, libertando-nos do pecado e da morte:
“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi obra do Senhor, uma maravilha aos nossos olhos. Este é o dia que o Senhor fez; exultemos e alegremo-nos nele!” (Salmo 118,22-24)
A partir disso, vemos como os primeiros cristãos começam a reunir-se e a celebrar a Eucaristia no domingo, o primeiro dia da semana, como observado em Atos 20,7 e 1 Coríntios 16,2. Não há uma única menção em todo o Novo Testamento de que os primeiros cristãos, após a ressurreição de Cristo, guardassem o sábado1.
Outro dado importante encontra-se no capítulo 15 do livro de Atos dos Apóstolos, que narra o primeiro grande conflito enfrentado pela Igreja primitiva. Ocorreu quando judeus convertidos foram à comunidade de Antioquia e se escandalizaram ao ver que os membros convertidos não eram circuncidados nem observavam outros preceitos da Lei judaica. Essas pessoas começaram a pregar que era necessário cumprir a circuncisão e toda a Torá, causando grande inquietação entre os primeiros cristãos de origem grega. Por essa razão, realizou-se o que ficou conhecido como o Concílio de Jerusalém, no qual os Apóstolos se reuniram para discutir a questão e tomar as seguintes decisões disciplinares:
“Decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor mais nenhuma carga além destas indispensáveis: abster-vos do que foi sacrificado aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e da impureza. Fareis bem em vos guardardes destas coisas. Adeus.” (Atos 15,28-29)
Não houve qualquer menção sobre manter o sábado como dia de repouso, nem encontramos em todo o Novo Testamento qualquer ordem que reafirme a necessidade de continuar guardando-o. Pelo contrário, observamos que a insistência de alguns judeus cristãos convertidos não desapareceu imediatamente, o que levou São Paulo a advertir:
“Portanto, ninguém vos julgue por questões de comida ou bebida, ou por causa de festas, luas novas ou sábados. ” (Colossenses 2,16)
“Este dá preferência a um dia sobre todos; aquele considera todos os dias iguais. Que cada um siga a sua própria consciência!” (Romanos 14,5)
A observância do sábado na Igreja primitiva
A seguir, apresentamos alguns testemunhos importantes da Igreja primitiva a respeito do domingo como o dia do Senhor.
A Epístola de Barnabé (96-98 d.C.)
Neste tratado cristão de 22 capítulos2, tradicionalmente atribuído a São Barnabé, que aparece no livro dos Atos dos Apóstolos como colaborador e companheiro de São Paulo de Tarso, encontramos uma explicação detalhada da visão cristã primitiva sobre como, para os cristãos, o dia do Senhor era o domingo, por ser o dia da ressurreição de Cristo.
“Por fim, Ele lhes diz [o Senhor]: «As vossas luas novas e os vossos sábados não os suporto» (Isaías 1,13). Vede como diz: Não Me agradam os vossos sábados de agora, mas aquele que Eu fiz, aquele em que, fazendo descansar todas as coisas, farei o princípio de um oitavo dia, ou seja, o princípio de um outro mundo. Por isso, nós celebramos também com alegria o oitavo dia, pois é o dia em que Jesus ressuscitou dentre os mortos, e, depois de Se manifestar, subiu aos céus.”3
A Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos (65-80 d.C.)
É uma obra de capital importância por ser um dos mais antigos escritos cristãos não canónicos do grupo dos Padres Apostólicos, considerado anterior a muitos escritos do Novo Testamento. Foi escrita entre os anos 65 e 80 da era cristã4. Encontramos nela uma breve menção à celebração contínua da Eucaristia em cada dia do Senhor, como o sacrifício perpétuo agradável a Deus, profetizado pelo profeta Malaquias:
“Reunidos a cada dia do Senhor, parti o pão e dai graças, depois de terdes confessado os vossos pecados, para que o vosso sacrifício seja puro. Todo aquele, contudo, que tiver contenda com o seu companheiro, não se reúna convosco até que se tenham reconciliado, a fim de que o vosso sacrifício não seja profanado. Pois este é o sacrifício de que o Senhor disse: Em todo lugar e em todo tempo se Me oferece um sacrifício puro, porque Eu sou um grande rei, diz o Senhor, e o Meu nome é admirável entre as nações (Malaquias 1,11).”5
Inácio de Antioquia (107 d.C.)
Este é um testemunho importante, por tratar-se de um discípulo de Pedro e Paulo, segundo bispo de Antioquia e mártir aproximadamente no ano 107 d.C. Ao escrever aos magnésios, ele explica que os cristãos não guardavam o sábado, mas sim o domingo:
“Ora, se aqueles que foram formados na antiga ordem de coisas vieram para a novidade da esperança, já não guardando o sábado, mas vivendo segundo o domingo, dia em que também despontou nossa vida pela graça do Senhor e pelo mérito de Sua morte – mistério que alguns negam –, sendo assim que por Ele recebemos a graça de crer e por Ele sofremos, a fim de sermos encontrados discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre, como podemos nós viver fora d’Aquele a quem os próprios Profetas, que já eram Seus discípulos no Espírito, esperavam como seu Mestre? E por isso, aquele mesmo a quem justamente esperavam, ao vir, os ressuscitou dentre os mortos… É absurdo levar Jesus Cristo entre vós e viver à maneira judaica. Pois não foi o cristianismo que acreditou no judaísmo, mas o judaísmo no cristianismo, no qual foi congregada toda língua que crê em Deus.”6
Justino Mártir (100–165 d.C.)
Nos escritos de São Justino, também encontramos evidências de que, para as primeiras comunidades cristãs, o dia do Senhor era o domingo. Um desses testemunhos aparece na sua Primeira Apologia7, uma carta dirigida ao imperador romano de sua época, em defesa dos cristãos perseguidos:
“No dia chamado do sol [domingo], realiza-se uma reunião de todos os que habitam nas cidades ou nos campos, e ali são lidos, conforme o tempo permite, as Memórias dos Apóstolos ou os escritos dos Profetas. Depois, quando o leitor termina, o presidente, com suas palavras, faz uma exortação e convite para que imitemos estes belos exemplos. Em seguida, todos nos levantamos como um só e elevamos nossas orações, e, uma vez terminadas, como já dissemos, oferecem-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, dirige igualmente a Deus as suas preces e ações de graças, e todo o povo exclama dizendo ‘amém’. Depois vem a distribuição e participação, feita a cada um, dos alimentos consagrados pela ação de graças, e também o envio destes pelos diáconos aos ausentes.”8
Outra de suas obras, Diálogo com Trifão, reúne um dos seus debates com um dos sábios judeus da época. Nela, este último critica os cristãos por não observarem a circuncisão nem o sábado: “nem guardais as festas e os sábados, nem praticais a circuncisão”9, e em seguida aconselha obedecer à lei judaica.
“Se quiseres, pois, ouvir o meu conselho, pois já te considero como meu amigo, em primeiro lugar circuncida-te, depois observa, como é nosso costume, o sábado, as festas e os novilúnios de Deus, e cumpre, em uma palavra, tudo o que está escrito na lei, e então, talvez, alcances misericórdia da parte de Deus.”10
“Há algo mais que nos reproveis, amigos, ou trata-se apenas de que não vivemos conforme à vossa lei, nem circuncidamos a nossa carne, como os vossos antepassados, nem guardamos os sábados como vós?”11
“Já é necessária a segunda circuncisão, e vós continuais com o vosso orgulho da carne. A nova lei quer que guardeis o sábado continuamente, e vós, por passardes um dia sem fazer nada, já vos parece que sois religiosos…”12
“Porque também nós observaríamos essa circuncisão carnal e guardaríamos o sábado e absolutamente todas as vossas festas, se não soubéssemos a causa pela qual vos foram ordenadas… Não os observamos porque essa circuncisão não é necessária para todos, mas apenas para vós… E sem sábado também agradaram a Deus todos os justos anteriormente mencionados, e depois deles Abraão e todos os filhos de Abraão até Moisés… Também, pois, o sábado vos foi ordenado por Deus para que tivésseis memória d’Ele.”13
“Porque, se antes de Abraão não havia necessidade de circuncisão, nem antes de Moisés do sábado, das festas ou dos sacrifícios, tampouco há agora, depois de Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido sem pecado de Maria Virgem, do linhagem de Abraão.”14
Não resta dúvida, com base neste antigo diálogo entre um cristão e um judeu do século II, de que, já naquela época, os judeus conheciam perfeitamente que os cristãos não guardavam o sábado, e os cristãos reconheciam que não o faziam.
Tertuliano (160–220 d.C.)
Tertuliano menciona expressamente o descanso dominical em virtude de ser o dia em que o Senhor ressuscitou:
“Nós, contudo, (segundo nos ensinou a tradição), no dia da Ressurreição do Senhor, não devemos apenas evitar ajoelhar-nos, mas também deixar de lado todas as preocupações e afazeres, adiando inclusive os nossos negócios, a menos que queiramos dar lugar ao diabo.”15
Cipriano de Cartago (200–? d.C.)
Em uma carta dirigida a Fido, tratando do tema do batismo de crianças, menciona o domingo como o dia do Senhor, por ser o dia em que Cristo ressuscitou:
“Como o oitavo dia, isto é, o imediato ao sábado, era o dia em que o Senhor havia de ressuscitar e nos dar a vida com a circuncisão espiritual, por isso, na antiga lei, este dia foi observado.”16
Adicionalmente, a estes e outros testemunhos, soma-se o Concílio Local de Elvira, celebrado no ano 300, que em seu cânon 21 demonstra que o dia em que a Igreja se reunia era o domingo: “Se alguém na cidade deixar de ir à igreja por três domingos, que seja excomungado por um curto período para que se corrija.”
Conclusões
O imperador Constantino decretou a liberdade de culto no Édito de Milão, no ano 313. No entanto, já se verificaram testemunhos de mais de 250 anos antes, indicando que os cristãos celebravam a Eucaristia no domingo e não guardavam o sábado. Não é verdade, portanto, que foi Constantino quem realizou essa mudança.
- Frequentemente vemos São Paulo entrar nas sinagogas aos sábados, mas o fazia para evangelizar os judeus que guardavam o sábado e se reuniam nesse dia (cf. Atos 13,14.44; 15,21; 18,4).
- Pode ler esta carta na Web em http://escrituras.tripod.com/Textos/EpBernabe.htm
- Carta a Barnabé, XVI, 8
Ibid., p. 803 - Pode ler a tradução protestante desta carta na Web em http://escrituras.tripod.com/Textos/Didache.htm
- Didaché, XIV, 1-3
Ibid., p. 91 - Inácio de Antioquia, Carta aos Magnésios, IX; X,3
Ibid., p. 464-465 - Pode ler esta carta na Web em http://multimedios.org/docs/d002610/
- Justino Mártir, Apologia I, 67
Daniel Ruiz Bueno, Padres Apologetas Griegos, Biblioteca de Autores Cristianos 166, Madrid 1996, p. 258 - Justino Mártir, Apologia I, 10,3
Ibid., p. 318 - Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 8,4
Ibid., p. 315-316 - Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 10,1
Ibid., p. 317 - Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 12,3
Ibid., p. 321 - Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 18,2; 19,2.4
Ibid., p. 331-333 - Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 23,4
Ibid., p. 340 - De orat., XXIII; cf. “Ad nation.”, I, XIII; “Apology.”, XVI
Traduzido de Enciclopedia Católica, Domingo - Cipriano de Cartago, Carta LVIII, A Fido sobre o batismo de crianças
Obras de San Cipriano Obispo y Mártir, Tomo I, Arámburu y Roldán, Valladolid 1807, p. 262