Antes estudávamos a essência do papado e dizíamos que, embora o estilo de exercer o papado tenha variado ao longo da história, isso não implicava que ele não existisse. Neste capítulo, examinaremos mais detalhadamente a evidência histórica relacionada ao primado do bispo de Roma durante os primeiros séculos do cristianismo.
São Clemente de Roma (? – 101 d.C.)
Como bispo de Roma e terceiro sucessor de São Pedro1, Clemente teve que enfrentar uma rebelião na comunidade de Corinto, ocorrida aproximadamente no ano 96, na qual os bispos legitimamente constituídos foram depostos de seus ministérios. Clemente envia uma carta disciplinar em nome da Igreja de Roma que acaba com a revolta e restaura a paz naquela comunidade. Aqui estão alguns fragmentos desta carta:
“Da Igreja de Deus que habita como estrangeira em Roma, à Igreja de Deus que habita como estrangeira em Corinto. Devido às repentinas e sucessivas calamidades e tribulações que nos atingiram, acreditamos, irmãos, ter tardiamente voltado nossa atenção para os assuntos discutidos entre vocês. Refiro-me, queridíssimos, à sedição, estranha e estranha aos escolhidos de Deus, abominável e sacrílega, que alguns poucos sujeitos, pessoas lançadas e arrogantes, incitaram até o ponto de insanidade, de modo que o seu nome, venerável e muito celebrado e digno do amor de todos os homens, veio a ser gravemente ultrajado.”2
“Mas se alguns desobedecerem às admoestações que por nosso intermédio Ele mesmo lhes dirigiu, saibam que tornar-se-ão culpados de pecado não pequeno e expõem-se a grave perigo. Mas nós seremos inocentes deste pecado…”3
Embora não seja comum que os historiadores protestantes vejam nesta carta uma evidência a favor do primado romano4, há poderosas razões para pensar que sim. Em primeiro lugar, é significativo o fato de que o autor começa se desculpando por não ter podido atender prontamente às irregularidades da comunidade, o que prova, como comenta Johannes Quasten, que:
“A carta não foi inspirada apenas pela vigilância cristã dos primórdios nem pela solicitude de umas comunidades pelas outras. Se fosse assim, seria obrigado a apresentar desculpas por se envolver na controvérsia. Em vez disso, o bispo de Roma considera como dever tomar o assunto em suas mãos e acredita que os coríntios pecariam se não lhe prestassem obediência… Um tom tão autoritário não é suficientemente explicado pelo simples fato das estreitas relações culturais que existiam entre Roma e Corinto. O escritor está convencido de que suas ações são inspiradas pelo Espírito Santo: ‘Trazeremos alegria e regozijo se obedecerdes o que acabamos de escrever impulsados pelo Espírito Santo.’” 5
Uma explicação semelhante nos é dada por José Orlandis6:
“Trata-se de um fato tão significativo – tanto pela época em que ocorreu, quanto pelo seu conteúdo – que Pierre Batiffol7 o denominou “a epifania do primado romano”.8
Dado que Trajano reinou de 98 d.C a 117 d.C, João deve ter ainda estado vivo quando ocorreu a revolta (ano 96). O fato do bispo de Roma ter se sentido obrigado a disciplinar a revolta de uma igreja tão distante e não o Apóstolo João, estando muito mais próximo, só faz sentido se for o bispo de Roma, como sucessor de Pedro, que exerce o “ministério de pastor supremo com poder de jurisdição de manter a unidade universal e ortodoxia dentro da Igreja Cristã”. Não se explica de maneira satisfatória outra razão pela qual os coríntios deveriam se submeter ao bispo de uma igreja distante, quando eles mesmos desobedeceram e removeram seus próprios presbíteros de suas funções.9
Também é bastante significativo que, na data em que ocorreu a revolta, o Apóstolo São João ainda estivesse vivo e presidindo na igreja próxima de Éfeso, fato atestado por São Ireneu quando escreve:
“Finalmente, a Igreja de Éfeso, fundada por Paulo e na qual João permaneceu até o tempo de Trajano, também é testemunha da verdadeira Tradição apostólica”.10
Dado que Trajano reinou de 98 d.C a 117 d.C, João deve ter ainda estado vivo quando ocorreu a revolta (ano 96). O fato do bispo de Roma ter se sentido obrigado a disciplinar a revolta de uma igreja tão distante e não o Apóstolo João, estando muito mais próximo, só faz sentido se for o bispo de Roma, como sucessor de Pedro, que exerce o “ministério de pastor supremo com poder de jurisdição de manter a unidade universal e ortodoxia dentro da Igreja Cristã”. Não se explica de maneira satisfatória outra razão pela qual os coríntios deveriam se submeter ao bispo de uma igreja distante, quando eles mesmos desobedeceram e removeram seus próprios presbíteros de suas funções11.
São Ignácio de Antioquia (? – 107 d.C.)
Discípulo de Pedro e Paulo, segundo bispo de Antioquia e mártir durante o reinado de Trajano, aproximadamente no ano 107 d.C. Quando foi condenado à morte, lhe foi ordenado que se deslocasse da Síria para Roma para ser martirizado. No caminho para Roma, escreveu sete epístolas dirigidas às igrejas de Éfeso, Magnesia, Tralia, Filadélfia, Esmirna, Roma e uma carta a São Policarpo12.
A carta mais importante é a que escreveu à igreja de Roma, e é impossível não notar um tom diferente do que ele utilizou com as outras igrejas, nas quais se observa, ao contrário da anterior, um tom de instrução autoritária.
“Ignácio, por sobrenome Portador de Deus: à Igreja que alcançou misericórdia na magnificência do Pai altíssimo e de Jesus Cristo seu único Filho; a que é amada e é iluminada pela vontade daquele que quis todas as coisas que existem, segundo a fé e a caridade de Jesus Cristo Deus nosso; Igreja, além disso, que preside na capital do território dos romanos; digna dela de Deus, digna de todo decoro, digna de toda bem-aventurança, digna de louvor, digna de alcançar tudo o que deseje, digna de toda santidade; e colocada à frente da caridade, seguidora que é da lei de Cristo e adornada com o nome de Deus: meu saudação no homem de Jesus Cristo, Filho do Pai…”13
Não é imperceptível o reconhecimento de Ignácio desta Igreja como aquela “que preside em Roma” e que está “colocada à frente da caridade”. Muito menos o tom, não transmitindo instrução, mas solicitando confirmação:
“A ninguém jamais tivestes inveja; a outros ensinastes a não ter. Agora, pois, o que eu quero é que o que a outros mandais quando os instruis como a discípulos do Senhor, seja também firme respeito a mim. O único que para mim deveis pedir é força, tanto interior como exterior, para que não só fale, mas também esteja também decidido; para que não só, digo, me chame cristão, mas me mostre como tal.”14
“Não vos dou eu mandatos como Pedro e Paulo. Eles foram apóstolos; eu não sou mais que um condenado à morte; eles foram livres; eu, até o presente, sou um escravo…”15
Mark Bonocore em seu debate com Jason Engwer sobre esse assunto comenta:
“O mais significativo é que, enquanto Ignácio solicita a todas as Igrejas às quais escreve que orem pela sua igreja na Síria (Antioquia), nunca encarrega essa ao cuidado de outra igreja, mas apenas a Roma. A frase que ele usa também é bastante interessante, ecoando a terminologia que ele invoca em sua introdução, onde diz como ‘Roma preside na caridade’. Agora, em sua conclusão, ele diz sobre Antioquia:
‘Lembrai-vos nas vossas orações da Igreja da Síria, que agora, em lugar de mim, tem por pastor a Deus. Somente Jesus Cristo e a vossa caridade farão com ela o ofício de bispo.’”16
Irineu de Lyon (130-202 d.C.)
Em seu tratado Adversus haereses (Contra as heresias), testemunha poder enumerar os bispos designados pelos Apóstolos nas diferentes igrejas e a série dos que foram sucedendo até o seu tempo, no entanto, por ser tarefa demasiado longa, limita-se a nos dar a sucessão episcopal da Igreja de Roma, a qual qualifica de “a mais grande”, “a mais antiga” e “melhor conhecida por todos”.
“Mas como seria muito extenso, neste volume, enumerar as sucessões de todas as igrejas, limitaremos-nos à igreja mais grande, mais antiga e mais conhecida por todos, fundada e estabelecida em Roma pelos dois gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo, demonstrando que a tradição que recebeu dos apóstolos e a fé que anunciou aos homens chegaram até nós por sucessões de bispos. Isso servirá para confundir todos aqueles que, de uma forma ou de outra, seja por satisfação ou por vaidade, seja por cegueira ou por erro, celebram reuniões não autorizadas…”17
Em seguida, há uma declaração muito importante em que destaca-se a primazia da Igreja de Roma sobre as demais, na qual a tradução latina que se conserva diz: Ad hanc enim ecclesiam propter potentiorem principalitatem necesse est omnem convenire ecclesiam, hoc est omnes qui sunt undique fideles, in qua semper ab his qui sunt undique, conservata est ea quae est ab apostolis traditio.
Uma tradução possível seria: “Porque, devido ao seu poder principal mais eficaz, é necessário que todas as igrejas, ou seja, todos os fiéis de todas as partes, concordem com esta igreja, onde sempre foi mantida pela fé de todos a tradição apostólica.”
Uma objeção à evidência apresentada por esses escritos de São Ireneu sobre a primazia do bispo de Roma como sucessor de Pedro é explicada pela Enciclopédia Católica:
“Alguns escritores não católicos tentaram diminuir a importância do texto ao traduzir a palavra convenire como ‘recorrer a’, entendendo assim apenas que os fiéis de todos os lugares recorriam a Roma para que o fluxo da doutrina da Igreja fosse mantido imune ao erro. No entanto, essa tradução é refutada pela conclusão do argumento, que é baseada inteiramente na afirmação de que a doutrina romana é mantida pura graças ao fato de ter sua origem nos dois apóstolos fundadores daquela Igreja, Pedro e Paulo. As freqüentes visitas de membros de outras igrejas cristãs a Roma não acrescentavam nada a isso. Além disso, a tradução tradicional é exigida pelo próprio contexto, sobre a qual, embora tenha sido alvo de inúmeros ataques, não se encontrou nenhuma outra com melhores probabilidades reais (ver Dom J. Champman em ‘Revue Benedictine’, 1895, p. 48).”18
Mais tarde, São Ireneu logo lista os bispos romanos, continuando com Lino, Anacleto, Clemente até Eleuterio:
“Depois de terem fundado e edificado a Igreja, os bem-aventurados Apóstolos entregaram o serviço do episcopado a Lino: este Lino é lembrado por Paulo nas suas cartas a Timóteo (2 Timóteo 4, 21). Anacleto o sucedeu. Depois dele, em terceiro lugar a partir dos Apóstolos, Clemente herdou o episcopado, o qual viu os bem-aventurados Apóstolos e conferiu com eles, e teve diante dos olhos a pregação e Tradição dos Apóstolos que ainda ressoava; e não ele só, pois ainda viviam naquele tempo muitos que haviam recebido a doutrina dos Apóstolos. Na época deste mesmo Clemente, havendo surgido uma dissensão não pequena entre os irmãos que estavam em Corinto, a Igreja de Roma escreveu a carta mais autorizada aos Coríntios, para os reunir na paz e reparar sua fé, e para anunciar-lhes a Tradição que pouco tempo antes haviam recebido dos Apóstolos…”19
Para finalizar, também é importante mencionar a atribuição explícita da fundação da Igreja de Roma por Pedro e Paulo. Há um tempo em que alguns eruditos protestantes negavam que Pedro sequer esteve em Roma, hoje em dia é mais difícil encontrar essa objeção entre os setores cultos do protestantismo.
“Mateus, que pregou aos hebreus em sua própria língua, também escreveu o Evangelho quando Pedro e Paulo evangelizavam e fundavam a Igreja. Depois que eles morreram, Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, também nos transmitiu por escrito a pregação de Pedro. Da mesma forma, Lucas, seguidor de Paulo, registrou em um livro o Evangelho que este pregava. Por fim, João, o discípulo do Senhor que se recostou sobre seu peito (João 21, 20; 13, 23), escreveu o Evangelho enquanto residia em Éfeso.”20
A controvérsia pascal
Durante o pontificado do Papa São Vítor (189 d.C. – 198 d.C.), há uma afirmação mais explícita sobre a supremacia da Igreja de Roma em relação às outras igrejas. A controvérsia pascal surgiu como resultado das diferenças entre a igreja de Roma – a qual a maioria das outras seguia – e as igrejas asiáticas, quanto ao dia da celebração da Páscoa. Embora pudesse parecer que a diferença era secundária, essa data condicionava todo o ciclo litúrgico, o que era um sinal visível de comunhão entre todas as igrejas.
É importante observar como para resolver o conflito, São Policarpo (discípulo do próprio São João) se transferiu para Roma com mais de 80 anos de idade. Ele alegava que não podia renunciar a uma tradição que havia recebido do próprio São João. Devido a isso, o Papa e São Policarpo mantiveram a paz, embora já no século II o problema volte a agravar-se quando, na liturgia das igrejas asiáticas, são introduzidas algumas observâncias com cor judaica. Diante disso, o Papa Vítor I, consciente de sua potestade primacial, convocou a reunião de sinódos provinciais nas diversas igrejas, e todos eles, exceto os asiáticos, mostraram-se de acordo com o exposto pelo Papa e pela tradição romana. Então, o Papa Vítor ameaçou com sanções canônicas e com a excomunhão. O cisma não se produziu graças à intervenção de São Ireneu, que, depois de reconhecer sua adesão à observância romana, pediu ao Papa que não os excomungasse pelo apego que mostravam às suas antigas tradições, sendo que não se tratava de uma questão doutrinal. O Papa aceitou não excomungá-los e, igualmente, a longo prazo, eles acabaram por aceitar a disciplina romana.
Novamente, aqui temos um bispo de Roma exercendo o ministério da unidade e consciente da autoridade que recebeu, ao ponto de ameaçar com sanções de excomunhão a outras igrejas, o que demonstra que também para essa data tão cedo, a igreja de Roma estava consciente de sua primazia.
Notas de rodapé
- Assim consta na lista mais antiga de bispos romanos que nos deixou São Ireneu (Contra as heresias 3, 3, 3) e por Eusebio de Cesaréia em sua obra História Eclesiástica 3, 15, 34.
- Clemente Romano, Epístola de Clemente aos Coríntios I
Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, Biblioteca de Autores Cristãos 65, Quinta Edição, Madrid 1985, p. 177. - Clemente Romano, Epístola de Clemente aos Coríntios LIX
Ibid., p. 231. - Cesar Vidal Manzanares, historiador protestante escribe sobre esta carta en su Diccionario de patrística: “La carta reviste cierta importancia por cuanto no sólo contiene un testimonio de importancia acerca de la estancia de Pedro en Roma y de la de Pablo en España, sino que, además, aparece en ella la primera declaración expresa sobre la sucesión apostólica (XLIV, 1-3), con todo no afirma el primado de la sede de Roma.”
- Johannes Quasten, Patrologia I, Biblioteca de Autores Cristãos 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 56.
- José Orlandis foi professor de História do Direito da Universidade de Zaragoza. Decano da Faculdade de Direito Canônico e primeiro Diretor do Instituto de História da Igreja. Ele realizou mais de duzentos trabalhos e mais de 20 livros.
- Pierre Batiffol, historiador francês, foi o primeiro capelão do Colégio de Santa Bárbara. Também foi reitor da Universidade Católica de Tolusa. Escreveu uma série de ensaios escolares sobre a história da Igreja primitiva. Ele é reconhecido como um erudito em história da Igreja.
- José Orlandis, El pontificado Romano en la historia, Editorial Palabra, Segunda Edição, Madrid 2003, p. 36.
- Ibid.
- Ireneu de Lyon, Contra as heresias 3, 3, 4
- O historiador Berthold Altaner, embora admita a consciência da primazia da Igreja de Roma, também atestada pela recepção positiva da carta, tenta uma explicação alternativa: “Na intervenção da Igreja de Roma – Clemente próprio assume imediatamente uma ativa participação, o que pode ser explicado em parte pela vigilância cristã primitiva e pelo cuidado das Igrejas, bem como pelas estreitas relações políticas e culturais entre Corinto e Roma, já que esta havia sido refundada como colônia romana (44 aC). No entanto, já aqui podemos prever o espírito, o poder e a pretensão de Roma de manter uma posição especial entre todas as outras comunidades da καθολική έκκλησία (Ign., Smyrn. 8,2). A estima particular com a qual a epístola foi recebida no início do segundo século aponta na mesma direção” (Berthold Altaner, Patrology, Herder KG 1960, p. 99). Explicação que parece menos satisfatória do que a do historiador José Orlandis, precisamente porque, embora existissem estreitas relações políticas e culturais entre Roma e Corinto, essas não criariam uma obrigação moral de obediência de uma igreja para com a outra.
- Policarpo. Bispo de Esmirna e discípulo do Apóstolo São João. Morreu mártir.
- Ignacio de Antioquía, Carta a los romanos, Firma y saludo.
Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, BAC 65, Quinta edição, Madrid 1985, p. 474 - Ignácio de Antioquia, Carta aos romanos 3, 1.
Ibid., p. 476. - Ibid., p. 477.
- Ignacio de Antioquía, Carta a los romanos IX
Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, BAC 65, Quinta edição, Madrid 1985, p. 480. - Ireneu de Lyon, Contra as heresias 3, 3, 2.
Johannes Quasten, Patrologia I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, pág. 303. - Enciclopedia Católica. “Papa”.
- Ireneu de Lyon, Contra as heresias 3, 3, 3.
- Ireneu de Lyon, Contra as heresias 3, 3, 1.