A Doutrina da Santíssima Trindadena Igreja Primitiva

Não podemos terminar de falar sobre a doutrina trinitária sem estudar o desenvolvimento dessa doutrina desde os primórdios da Igreja até o Concílio de Niceia.

É aqui que pode surgir a pergunta: as doutrinas da Igreja evoluem? A resposta seria que, embora elas não evoluam em termos de conteúdo (o que seria uma evolução “transformista”), elas se desenvolvem em termos de consciência adquirida pela Igreja (evolução homogênea ou no mesmo sentido). Assim, o tempo permitiu que a terminologia fosse enriquecida para expressar de forma mais precisa o que a Igreja sempre acreditou. É assim que surge o termo “Trindade”, como uma forma de definir o mistério de que há um único Deus em Três Pessoas distintas que têm a mesma natureza ou substância.

É importante esclarecer isso, pois muitas seitas tentam atacar a doutrina trinitária afirmando que ela era desconhecida pelos cristãos primitivos e que foi sob a influência do paganismo sobre o cristianismo que essa doutrina foi “inventada”. Um exemplo desses ataques é o que encontrei nas publicações dos testemunhas de Jeová, que escrevem:

“O Concílio de Niceia confirmou que Cristo era da mesma substância que Deus, o que estabeleceu a base para a teologia trinitária posterior. No entanto, não estabeleceu a Trindade, pois no concílio não se disse que o espírito santo era a terceira pessoa de uma Deidade trina e uma…

Por muitos anos houve muita oposição, baseada na Bíblia, ao desenvolvimento da ideia de que Jesus era Deus. Em uma tentativa de resolver a disputa, o imperador romano Constantino convocou todos os bispos para Niceia. …

Qual foi o papel do imperador não batizado no Concílio de Niceia? A Encyclopædia Britannica relata: “Constantino presidiu e ativamente dirigiu as discussões e propôs pessoalmente […] a fórmula decisiva que expressava a relação de Cristo com Deus no credo emitido pelo concílio, que é ‘consubstancial com o Pai’ […] Impressionados pelo imperador, os bispos – com apenas duas exceções – assinaram o credo, embora muitos deles não estivessem muito inclinados a fazê-lo.”1

O folheto resumiu que a doutrina trinitária é produto de uma manobra política do imperador Constantino, que acabou obrigando os bispos a reconhecer que Cristo era Deus quase contra a sua vontade.

Nada melhor então do que estudar o testemunho dos pais anteriores a Niceia, para conhecer qual foi o verdadeiro desenvolvimento da doutrina trinitária ao longo da história.

A Didaché (65-80 d.C.)

É um excelente testemunho do pensamento da Igreja primitiva e mencionamos isso por incluir uma menção de como a fórmula trinitária de batismo era usada pela Igreja primitiva.

“Sobre o batismo, batize assim: Dito isto, batize em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em água viva.”2

O Martírio de Policarpo (155 d.C.)

É um dos escritos apostólicos que faz uso das belas doxologias que expressam tão claramente o dogma trinitário.

“A Ele [Jesus Cristo] seja a glória com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.”3

O Pastor de Hermas (141-155 d.C.)

“Ao Espírito Santo, que é preexistente, que criou toda a criação. Deus fez que ele habitasse no corpo de carne que Ele quis. Agora, este corpo em que o Espírito Santo habitou serviu bem ao Espírito, andando em santidade e pureza, sem manchar absolutamente nada a ele mesmo. Como ele teria, então, levado uma conduta excelente e pura e tido parte em todo o trabalho do Espírito e cooperado com Ele em todo negócio, se comportando sempre fortemente e corajosamente, Deus o tomou por participante junto com o Espírito Santo. De fato, a conduta desta carne agradou a Deus, por não ter se manchado sobre a terra enquanto teve consigo o Espírito Santo. Assim, então, tomou por conselheiro seu Filho e os anjos gloriosos, para que esta carne, que havia servido sem repreensão ao Espírito, alcançasse também algum lugar de habitação e não parecesse que o galardão deste serviço era perdido. Porque toda carne em que o Espírito Santo habitou, se for encontrada pura e sem mancha, receberá sua recompensa.”4

Com base neste texto, Quasten explica: “De acordo com este trecho, parece que para Hermas a Trindade consiste em Deus Pai, em uma segunda pessoa divina, o Espírito Santo, que ele identifica com o Filho de Deus, e, finalmente, no Salvador, elevado a fazer parte de sua sociedade como recompensa por seus méritos. Em outras palavras, Hermas considera o Salvador como Filho adotivo de Deus no que se refere à sua natureza humana.”

Ignácio de Antioquia (? – 107 d.C.)

Entre os nomes com os quais São Ignácio designa Jesus estão: Jesus Cristo (112 vezes), Cristo Jesus (33), Senhor (34). Deus (13), Cristo (7), Jesus (3), Salvador, Filho de Deus, Sumo Sacerdote, Porta de Deus, Mestre, Pensamento de Deus, Logos, Boca de Deus, Conhecimento de Deus5.

“Ignácio, por alcunha Portador de Deus: À bendita em grandeza de Deus com plenitude: à predestinada desde antes dos séculos a servir por sempre para glória duradoura e inconmovível, glória unida e escolhida por graça da paixão verdadeira e por vontade de Deus Pai e de Jesus Cristo nosso Deus; à Igreja digna de toda bem-aventurança, que está em Éfeso de Ásia, meu saudação cordialíssima em Jesus Cristo e na alegria sem mácula.”6

“Um médico há, todavia, que é carnal a par que espiritual, engendrado e não engendrado, na carne feito Deus, filho de Maria e filho de Deus, primeiro passível e depois impassível, Jesus Cristo nosso Senhor.”7

“A verdade é que nosso Deus Jesus, o Ungido, foi levado por Maria em seu seio conforme a dispensação de Deus; do linhagem, certo, de Davi; por obra, todavia, do Espírito Santo. O qual nasceu e foi batizado, a fim de purificar a água com sua paixão.”8

“Ignácio, por alcunha Portador de Deus: À Igreja que alcançou misericórdia na magnificência do Pai altíssimo e de Jesus Cristo seu único Filho: a que é amada e está iluminada por vontade daquele que quis todas as coisas que existem, segundo a fé e a caridade de Jesus Cristo Deus nosso.”9[9]

Mais adiante na mesma epístola aos romanos:

“Permiti que eu seja imitador da paixão de meu Deus.”10

“Eu glorifico a Jesus Cristo, Deus, que é aquele que até tal ponto vos fez sábios; pois muito bem me dei conta de quanto apercebidos estais de fé inconmovível, bem assim como se estivésseis pregados, em carne e em espírito, sobre a cruz de Jesus Cristo.”11

Para São Ignácio, Cristo está acima do tempo e é intemporal, o que é contrário à teologia arriana adotada pelos testemunhas de Jeová, na qual negam que Cristo existe desde toda a eternidade.

“…Aguarda aquele que está acima do tempo, o Intemporal, o Invisible, que por nós se fez visível; o Impalpável, o Impassível, que por nós se fez passível: aquele que de todas as maneiras sofreu por nós?”12

Arístides (século II)

Deixou uma apologia da fé, a qual se considerava perdida, até que em 1878 os Mequitaristas de São Lázaro de Veneza publicaram um manuscrito do século X. Posteriormente em 1889, o sábio americano Rendel Harris descobriu uma tradução completa em sírio desta apologia. Nesta apologia Arístides utiliza a fórmula Trinitaria mencionando as três Pessoas Divinas.

“Este teve doze discípulos, os quais, depois de sua ascensão aos céus, saíram para as províncias do Império e ensinaram a grandeza de Cristo, da maneira que um deles percorreu os mesmos lugares pregando a doutrina da verdade, pois conhecem ao Deus criador e artífice do universo em seu Filho Unigênito e no Espírito Santo, e não adoram a nenhum outro Deus fora deste.”13

Atenágoras de Atenas (século II)

Atenágoras, ainda sem usar o termo Trindade é bastante explícito ao defini-la. Ele também rejeita o subordinacionismo e a tendência que posteriormente tomaria o arrianismo ao considerar Cristo um ser criado, tal como se deduz do seguinte texto escrito em torno de 177 d.C.:

“E se, pela eminência de vossa inteligência, se vos ocorre perguntar o que significa ‘filho’, direi brevemente: O Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, já que desde o princípio, Deus, que é inteligência eterna, tinha em si mesmo o Verbo, sendo eternamente racional, mas como procedente de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as mais grossas com as mais leves para serem sobre elas ideia e operação.”14

Aqui está a sua maneira de explicar a Trindade:

“Então, ficou suficientemente demonstrado que não somos ateu, pois aceitamos um único deus incriado e eterno e invisível, impassível, incompreensível e imenso, apenas compreensível pela razão e pela inteligência… Quem, então, não se surpreenderá ao ouvir chamar de ateus aqueles que aceitam um Pai Deus e um Filho Deus e um Espírito Santo, que mostram sua potência na unidade e sua distinção no ordenamento?”15

Taciano o Sírio (século II)

Chegou até nós seu discurso contra os gregos, obra onde ataca o politeísmo.

“Porque não estamos loucos, oh helenos, nem pregamos bobagens quando anunciamos que Deus apareceu na forma humana. Vocês que insultam, comparem seus mitos com nossas narrativas.”16

Melintón de Sardes (século II)

Depois de uma descoberta recente em 1930, sua Homilia sobre a Paixão foi publicada, onde São Melintón expõe uma cristologia muito lúcida na qual o conceito da divindade e da preexistência de Cristo dominam toda sua teologia.

“Porque, nascido como filho, conduzido como cordeiro, sacrificado como uma ovelha, enterrado como um homem, ressuscitou dos mortos como Deus, sendo por natureza Deus e homem. Ele é tudo: pois julga, é Lei; enquanto ensina, Verbo; enquanto salva, Graça; enquanto gera, Pai; enquanto é gerado, Filho; enquanto sofre, ovelha sacrificial; enquanto é sepultado, Homem; enquanto ressuscita, Deus. Este é Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos dos séculos.”17

No seguinte texto, afirma a preexistência de Cristo

“Este é o primogênito de Deus, que foi gerado antes do lucero matutino, que fez levantar a luz, que fez brilhar o dia, que separou as trevas, que colocou a primeira base, que suspendeu a terra em seu lugar, que secou os abismos, que estendeu o firmamento, que colocou ordem no mundo.”18

Nos fragmentos que temos por Anastácio o Sinaita, ele fala das duas naturezas de Cristo e de como ele é ao mesmo tempo verdadeiro Homem e verdadeiro Deus.

“Não é de maneira alguma necessário que, ao tratar com pessoas inteligentes, alegar que as ações de Cristo depois de seu batismo como prova de que sua alma e seu corpo, sua natureza humana, eram como as nossas, verdadeiras e não fantasmagóricas. As atividades de Cristo depois de seu batismo, e especialmente seus milagres, deram provas ao mundo da divindade oculta em sua carne. Sendo Deus e ao mesmo tempo homem perfeito, ele deu indicações positivas de suas duas naturezas: de sua divindade, pelos milagres durante os três anos que se seguiram depois de seu batismo; de sua humanidade, nos trinta anos que vieram antes de seu batismo, durante o qual, por causa de sua condição segundo a carne, ele encobriu as mostras de sua divindade, embora ele fosse o verdadeiro Deus que existia antes das idades.”19

Ireneu de Lyon (140 d.C. – 202 d.C.)

Em seu famoso tratado Contra as Heresias, ele expressa com clareza a fé trinitária da Igreja em um único Deus Pai, um único Senhor Jesus Cristo e no Espírito Santo. Ele defende que Jesus Cristo é para os cristãos “Senhor e Deus e Salvador e Rei”. É particularmente importante seu testemunho de que essa doutrina é pregada e acreditada por todas as Igrejas do mundo, como se tivessem uma única boca ou um único coração, já que este testemunho é bastante anterior ao concílio de Niceia.

“A única fé da Igreja

A Igreja, espalhada pelo orbe do universo até os confins da terra, recebeu dos Apóstolos e de seus discípulos a fé em um único Deus Pai soberano universal ‘que fez os céus e a terra e o mar e tudo o que há neles’, e em um único Jesus Cristo Filho de Deus, encarnado por nossa salvação, e no Espírito Santo, que pelos Profetas proclamou as Economias e o advento, a geração por meio da Virgem, a paixão e a ressurreição de entre os mortos e a assunção aos céus do amado Jesus Cristo nosso Senhor; e seu advento dos céus na glória do Pai para recapitular todas as coisas e para ressuscitar toda carne do gênero humano; de modo que diante de Jesus Cristo nosso Senhor e Deus e Salvador e rei, segundo o beneplácito do Pai invisível ‘toda joelho se dobre no céu, na terra e nos infernos, e toda língua o confesse’.

Ele julgará todos justamente, os ‘espíritos do mal’ e os anjos que caíram e os homens apóstatas, ímpios, injustos e blasfemos, para enviá-los para o fogo eterno, e para dar como prêmio aos justos e santos que observam seus mandamentos e perseveram em seu amor, uns desde o início, outros desde o momento de sua conversão, para a vida incorruptível, e cercá-los da luz eterna.

Como já dissemos, a Igreja recebeu esta pregação e esta fé e, espalhada por toda a terra, cuida dela como se habitasse em uma única família. Mantém a mesma fé, como se tivesse uma única alma e um único coração, e a prega, ensina e transmite com uma única voz, como se tivesse apenas uma única boca. Certamente, as línguas são diversas, de acordo com as diferentes regiões, mas a força da Tradição é uma e a mesma. As igrejas da Germânia não acreditam de maneira diferente nem transmitem outra doutrina diferente da que pregam as de Iberia ou dos Celtas, ou as do Oriente, como as de Egito ou Líbia, assim como também não diferem das igrejas estabelecidas no centro do mundo; mas, assim como o sol, que é uma criatura de Deus, é um e o mesmo em todo o mundo, assim também a luz, que é a pregação da verdade, brilha em todos os lugares e ilumina todos os seres humanos que querem chegar ao conhecimento da verdade. E nem aquele que se destaca pela eloquência entre os líderes da Igreja prega coisas diferentes dessas – porque nenhum discípulo está acima de seu Mestre, nem o mais fraco na palavra corta a Tradição: sendo uma e a mesma fé, nem aquele que pode muito explicar sobre ela a aumenta, nem aquele que menos pode a diminui.”20

Interpreta que quando Deus diz “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” Ele fala ao Filho e ao Espírito Santo. Afirma que Cristo é gerado, mas que ninguém conhece os mistérios desta geração, por isso é inútil que os hereges gnósticos tentem explicá-la.

“Portanto, se alguém nos perguntar: ‘Como o Pai emitiu o Filho?’ Respondemos que essa produção, ou geração, ou pronúncia, ou parto, ou qualquer outro nome com o qual essa origem possa ser chamada, é inefável. Não são conhecidos por Valentino, Marcião, Saturnino, Basilides, Anjos, Poderes, Potestades, mas apenas pelo Pai que o gerou e pelo Filho que nasceu dele. Portanto, sendo essa geração inefável, qualquer um que se atreva a narrar gerações e emanações, não está em sua mente quando promete descrever o indescritível.”21

Mais claro é no livro III, quando ele declara novamente Cristo como Deus, Senhor, sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado:

“Que nenhum dos filhos de Adão seja chamado Deus por si mesmo, ou proclamado Senhor, já foi demonstrado pelas Escrituras; e que ele somente, entre todos os homens de sua época, é proclamado Deus e Senhor, sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado, por todos os Profetas e Apóstolos e até mesmo pelo próprio Espírito, é algo que todos aqueles que aceitam um pouco da verdade podem ver.”22

Ele ensina que Cristo é Verdadeiro Homem e Verdadeiro Deus:

“As Escrituras não dariam todas essas testemunhas a respeito dele, se fosse apenas um homem semelhante a todos. Mas como ele teve uma geração acima de todas luminosa, do Pai Altíssimo, e também levou a termo a concepção da Virgem, as divinas Escrituras testemunham ambas coisas a respeito dele: que ele é homem sem beleza e passível, que se sentou sobre um jumentinho, que bebeu fel e vinagre, que foi desprezado pelo povo e que desceu até a morte; mas também que ele é Senhor santo e Conselheiro admirável, belo aos olhos, Deus forte, que vem sobre as nuvens como Juiz de todos. Isso é o que as Escrituras profetizam a respeito dele.

Quanto a homem, ele era para ser tentado; quanto a Verbo, para ser glorificado; o Verbo repousou para que pudesse ser tentado, desonrado, crucificado e morto, habitando em aquele homem que vence e suporta (o sofrimento) e se comporta como homem bom e ressuscita e é levado ao céu. Este é o Filho de Deus, Senhor nosso, Verbo existente do Pai e Filho do Homem porque nasceu da Virgem Maria; que teve sua origem dos homens pois ela mesma era um ser humano; teve a geração quanto a homem, e assim se tornou Filho do Homem.”23

Ele se opõe há mais de dois séculos à heresia do arrianismo, que afirmaria que houve um tempo em que o Filho não esteve com o Pai. Ele também rejeita antecipadamente o modalismo, diferenciando as Três Pessoas Divinas:

“Que o Verbo, ou seja, o Filho, esteve sempre com o Pai, de múltiplas maneiras demonstrámos. E que também sua Sabedoria, ou seja, o Espírito estava com Ele antes da criação.”24

No entanto, há autores que afirmam que ele não está completamente livre de subordinacionismo, o que poderia ser considerado heterodoxo à luz da teologia posterior.

“Se, por exemplo, alguém procura o motivo pelo qual somente o Pai conhece o dia e a hora, embora tudo comunique ao seu Filho, o próprio Senhor disse e ninguém pode inventar outro sem risco (de se equivocar), porque somente o Senhor é o Mestre da verdade; e ele nos disse que o Pai está sobre todas as coisas, pois disse: ‘O Pai é maior do que eu’ (João 14,28).

O Senhor, portanto, apresentou o Pai como superior a todos no que diz respeito ao seu conhecimento, para que nós, enquanto caminhamos por este mundo (1 Coríntios 7,31), deixemos a Deus o saber até o fundo dessas questões; porque se pretendemos investigar a profundidade do Pai (Romanos 11,33), corremos o risco de perguntar até mesmo se há outro Deus por cima de Deus.”25

“O Pai sustém ao mesmo tempo toda sua criação e o seu Verbo; e o Verbo que o Pai sustém, concede a todos o Espírito, de acordo com a vontade do Pai: a alguns na própria criação, dá-lhes o (espírito) da criação, que é criado; a outros, o de adoção, isto é, o que provém do Pai, que é obra de sua geração. Assim se revela como único o Deus e Pai, que está sobre tudo, através de todas e em todas as coisas. O Pai está sobre todos os seres, e é a cabeça de Cristo (1 Coríntios 11,3); pelo Verbo, que é Cabeça da Igreja, obra através de todas as coisas; e em todas as coisas, porque o Espírito está em nós, o qual é a água viva (João 7,38-39) que Deus concede aos que creem rectamente nele e o amam, e sabem que ‘um só é o Pai, que está sobre todas as coisas, por todas e em todas’.”26

Clemente de Alexandria (150-217 d.C.)

Em sua obra O Protreptico ou Exortação aos gregos, ele escreve:

“A palavra, então, o Cristo, é a causa do nosso antigo princípio – porque Ele Estava em Deus – e do nosso bem-estar. E agora esta mesma palavra apareceu como homem.

Ele é somente Deus e Homem, e a fonte de todas as coisas boas. É por ele que nos ensina a viver bem e então somos enviados para a vida eterna… Ele é a nova canção, a manifestação que agora nos foi feita, da palavra que existiu no princípio e antes do princípio. O salvador, que existiu antes, só apareceu posteriormente.

Ele que apareceu está nele que é, pela Palavra que estava com Deus, a Palavra pela qual todas as coisas foram feitas, apareceu como nosso mestre, e ele, que nos concedeu vida no princípio, quando, como nosso criador, Ele nos formou, agora que Ele apareceu como nosso mestre, nos ensinou a viver bem de modo que, então, como Deus, pudesse nos dar abundante vida eterna.”27

Em seu comentário sobre a primeira epístola de João, ele escreve: “O Filho de Deus, sendo, pela igualdade de substância, um com o Pai, é eterno e incriado”. Mais adiante, na mesma obra, ele profundiza ainda mais sua teologia do logos afirmando que a divina palavra é “evidentemente deus verdadeiro”, e acrescenta que estava “ao mesmo nível” que o Pai, o que provaria que não tinha inclinações subordinacionistas.

“Desprezado em termos de aparência, mas na realidade adorado, o Expiador, o Salvador, a Palavra Divina, Ele que é absoluta e evidentemente Deus Verdadeiro, Ele que está colocado ao mesmo nível do Senhor do Universo porque Ele era seu filho, e a palavra estava em Deus.”28

Em O Pedagogo (uma obra de três livros, é a continuidade do Protreptico), ele explica o capítulo 2 do livro I:

“…meus filhos, nosso instrutor é como o deus do pai dele, cujo filho Ele é, livre de pecado, livre de culpa, e com uma alma desprovida de paixão; deus em forma de homem, inoxidável, o ministro do seu Pai e a palavra que é deus, que está no pai, que é a mão direita do pai, e com a forma de deus é deus. Ele é para nós uma imagem impecável…”29

Teófilo de Antioquia (? – ~200 d.C.)

Assim como Tertuliano seria o primeiro a usar o vocábulo latino Trinitas, Santo Teófilo seria o primeiro a usar a palavra Τριας (trinitas) para expressar a união das três Pessoas Divinas em Deus.

“Os três dias que precedem a criação dos luminares são símbolo da Trindade, de Deus, de seu Verbo e de sua Sabedoria.”30

“Tendo, pois, Deus o seu Verbo imanente em suas próprias entranhas, o gerou com sua própria sabedoria, emitindo-o antes de todas as coisas. A este Verbo, Ele teve por ministro de sua criação e por meio dele fez todas as coisas… Este é chamado de princípio, pois é Príncipe e Senhor de todas as coisas por Ele fabricadas.”31

“Deus, sim, o Pai do universo, é imenso e não se limita a um lugar, pois não há lugar para descanso; mas sua Palavra, por meio da qual ele fez tudo, como sua própria potência e sabedoria, tomando a forma do Pai e Senhor do universo, é ela que apareceu no jardim na forma de Deus e conversou com Adão. E, de fato, a própria Escritura divina nos ensina que Adão disse ter ouvido sua voz. E essa voz, o que mais poderia ser senão a Palavra de Deus, que também é seu filho? Filho, não de forma que poetas e mitógrafos dizem que os deuses geram filhos por união carnal, mas como a verdade explica que a Palavra de Deus está sempre imanente no coração de Deus. Porque antes de criar qualquer coisa, ele tinha essa Palavra como conselheira, como sua mente e pensamento. E quando Deus quis fazer tudo o que planejou, gerou essa Palavra proferida como primogênita de toda a criação, não se desfazendo de sua Palavra, mas gerando a Palavra e sempre conversando com ela. Por isso, as Santas Escrituras e todos os inspirados pelo Espírito nos ensinam, entre os quais João diz: No princípio era a Palavra, e a Palavra estava em Deus; dando a entender que no começo Deus estava só e em Ele sua Palavra. E depois diz E Deus era a Palavra.”32

Tertuliano (160 d.C. – 220 d.C.)

Foi o primeiro a aplicar o vocábulo latino Trinitas (Trindade) às três divinas Pessoas. Em De pudicitia (Sobre a Modéstia) escreve:

“…Para a mesma igreja é, propriamente e principalmente, o próprio Espírito, no qual a Trindade de uma Divindade é encontrada – Pai, Filho e Espírito Santo.”33

Em Adversus Praxean (Contra Práxeas) dá uma explicação mais completa da doutrina trinitarista:

“No entanto, como sempre fizemos (e mais especialmente desde que fomos melhor instruídos pelo Paráclito, que leva os homens a toda a verdade), acreditamos que há um único Deus, mas sob o seguinte dispêndio, ou οἰκονομία, como é chamado, que este único Deus tem também um Filho, Sua Palavra, que procede dele mesmo, por quem todas as coisas foram feitas, e sem o qual nada foi feito. Acreditamos que Ele foi enviado pelo Pai para a Virgem e nasceu dela – sendo Deus e Homem, o Filho do Homem e o Filho de Deus, e foi chamado de Jesus Cristo; acreditamos que Ele sofreu, morreu, foi ferido, de acordo com as Escrituras, e, depois, ressuscitou pelo Pai e subiu ao céu, para sentar-se à direita do Pai, e Ele virá para julgar os vivos e os mortos, e Ele também enviou, de acordo com sua promessa, do céu do Pai, o Espírito Santo, o Paráclito, o santificador da fé dos que crêem no Pai, e no Filho e no Espírito Santo. Esta é a regra de fé que veio até nós desde o início do Evangelho, mesmo antes de todas as heresias antigas.”34

Mais adiante, no mesmo capítulo, ele escreve:

“…A heresia, que supõe por si mesma possuir a verdadeira pura, pensando que não se pode acreditar que há um único Deus de qualquer outra maneira que dizendo que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são a mesma Pessoa. Como se, neste caminho, todos não fossem também um, na qual todos são de um, pela unidade de substância; enquanto o mistério da dispensação é ainda mantido, que distribui a Unidade na Trindade colocando em ordem as três Pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo: três, no entanto não em condição, mas em grau, não em substância, mas em forma, não em poder, mas em aspecto.”35

Este texto é particularmente importante porque explica a concepção que Tertuliano tem da Trindade: Três Pessoas, mas não três naturezas, diferentes apenas em relação ao aspecto, e não ao poder. Isso também é confirmado no capítulo 4 da mesma obra, onde ele afirma novamente que o Filho é “da substância do Pai”: Filium non aliunde deduco, sed de substantia Patris36, e que o Espírito é “do Pai pelo Filho”: Spiritum non aliunde deduco quam a Patre per Filium37.

“Se a pluralidade na Trindade te escandaliza, como se não estivesse ligada na simplicidade da união, pergunto-te: como é possível que um ser que é puro e absolutamente único e singular, fale em plural: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’? Não deveria ter dito antes: ‘Faço eu o homem à minha imagem e semelhança’, já que é um ser único e singular? No entanto, no passo seguinte lemos: ‘Eis que o homem se tornou como um de nós’. Ou Deus nos engana ou se diverte de nós ao falar em plural, se Ele é único e singular; ou então, estaria Ele se dirigindo aos anjos, como interpretam os judeus, pois não reconhecem o Filho? Ou ainda, seria porque Ele era ao mesmo tempo Pai, Filho e Espírito que falava em plural, considerando-se múltiplo? Certamente, a razão é que Ele tinha ao seu lado uma segunda pessoa, seu Filho e sua Palavra, e uma terceira pessoa, o Espírito no Verbo. Por isso, deliberadamente empregou o plural: ‘Façamos… nossa imagem… um de nós’. De fato, com quem criava o homem? À semelhança de quem o criava? Falava, por um lado, com o Filho, que um dia se revestiria de carne humana; por outro, com o Espírito, que um dia santificaria o homem, como se falasse com tantos ministros e testemunhas.”38

Continuando no mesmo capítulo:

“…Agora, se ele também é Deus, de acordo com João, (que diz) A Palavra era Deus, então você tem dois seres – um que ordena que as coisas sejam feitas, e o outro que cumpre a ordem e cria. Neste sentido, no entanto, você deve entender dele ser outro, eu expliquei, que em relação à personalidade, não de substância – neste sentido de distinção, não de divisão. Mas, embora eu deva em qualquer lugar manter uma única substância em três coerente e inseparável (pessoas).”39

No texto acima, Tertuliano usa o termo “pessoa” para explicar que a Palavra (logos) é distinta do Pai “em termos de pessoa, não de substância, para distinção, não para divisão” e aplica-o também ao Espírito Santo, a quem chama “a terceira pessoa”.

Tertuliano contribuiu para a precisão de uma terminologia precisa para a doutrina Trinitária, mas ainda assim não se libertou completamente do subordinacionismo, ao ponto de interpretar que o Filho não era eterno, um dos erros do arrianismo.

“Foi então que a Palavra recebeu sua manifestação e seu complemento, ou seja, o som e a voz, quando Deus disse: ‘Haja luz!’ Esse é o nascimento perfeito da Palavra, quando procedeu de Deus. Primeiro foi produzido por Ele no pensamento sob o nome de Sabedoria: ‘Deus me criou no início de Seus caminhos’. Depois foi gerado com vistas à ação: ‘Quando fez os céus, estava perto Dele’ (Provérbios 8,27). Portanto, fazendo com que seu Pai fosse aquele de quem era Filho por proceder Dele, tornou-se o primogênito, porque foi gerado antes de todas as coisas, e Filho único, porque Ele só foi gerado por Deus.”40

Orígenes (185 – 254 d.C.)

Em 1941, foram descobertos alguns papiros em Toura (perto do Cairo). Lá é apresentada uma relação completa de uma disputa que surgiu quando as opiniões de Heráclides sobre a doutrina trinitária haviam preocupado seus irmãos do episcopado, e chamam assim a Orígenes para endireitar a questão. Esta disputa foi realizada na presença do povo e dos bispos em torno de 245.

A respeito disso, Quasten comenta em Patrologia I:

“Heráclides não gostava da fórmula de Orígenes ‘dois deuses’ como a única maneira de expressar claramente a distinção entre o Pai e o Filho. Isso implicava um perigo muito grande de politeísmo. Na discussão, Orígenes faz esta observação: ‘Como nossos irmãos se escandalizam ao ouvir que há dois deuses, este assunto merece ser tratado com delicadeza.’

Recurrendo à Escritura, Orígenes tenta demonstrar com dois podem ser um. Adão e Eva eram dois, no entanto, formavam uma só carne (Gên. 2,24). Ele cita então São Paulo, que, falando da união do homem justo com Deus, diz: ‘Quem se aproxima do Senhor se torna um espírito com Ele’ (1 Cor. 6,17). Finalmente, invoca como testemunha o próprio Cristo, pois disse: ‘Eu e meu Pai somos um’. No primeiro exemplo havia unidade de ‘carne’; no segundo, de ‘espírito’; no terceiro, de ‘divindade’. ‘Nosso Senhor e Salvador’, observa Orígenes, ‘na sua relação com o Pai e Deus do universo, não é uma só carne, nem tampouco um só espírito, mas algo muito mais elevado que a carne e o espírito, um só Deus.’”

Assim, Orígenes defende que o Pai e o Filho são divinos contra o monarquismo e o modalismo.

Quasten também reproduz o interrogatório de Orígenes a Heráclides com o seguinte acordo:

Orígenes disse: O Pai é Deus?
Heráclides respondeu: Sim.
Orígenes disse: O Filho é diferente do Pai?
Heráclides respondeu: Como poderia ser simultaneamente Filho e Pai?
Orígenes disse: O Filho, que é diferente do Pai, também é Deus?
Heráclides respondeu: Ele também é Deus.
Orígenes disse: Dessa forma, os dois Deuses formam um só?
Heráclides disse: Sim.
Orígenes disse: Portanto, afirmamos que há dois Deuses?
Heráclides respondeu: Sim, mas o poder é um.

Definição que, apesar de muito anterior a Nicéia e sem precisar da sua terminologia, consegue expressar o mesmo sentimento. Assim, com este acordo diante do povo e dos bispos, é proclamado que Cristo é Deus, mas como uma pessoa distinta do Pai. Dessa forma, defende-se a individualidade das Pessoas Divinas contra o modalismo e esclarece-se o medo de que, ao reconhecer Cristo e o Pai como Deus, caia-se no politeísmo.

Orígenes frequentemente utiliza o termo Trindade41, que o Filho procede do Pai, e como Deus é eterno, segue-se que este ato de geração também é eterno, o que faz com que o Filho não tenha início e que não houve um momento em que Ele não existisse (opondo-se antecipadamente à heresia do arrianismo, que afirmaria posteriormente o oposto, ou seja, que houve um momento em que o Filho não existia42).

“Não é possível conceber luz sem brilho. E se isso é verdade, nunca houve um momento em que o Filho não fosse o Filho. No entanto, não será, como dissemos da luz eterna, sem nascimento (pareceria que introduzimos dois princípios de luz), mas é, por assim dizer, o brilho da luz inata, tendo como princípio e fonte essa mesma luz, verdadeiramente nascido dela. No entanto, não houve um momento em que Ele não foi. A Sabedoria, por proceder de Deus, é também gerada da mesma substância divina. Sob a figura de uma emanação corporal, é chamada assim: ‘Emanação pura da glória de Deus onipotente’ (Sáb. 7,25). Estas duas comparações mostram claramente a comunidade de substâncias entre o Pai e o Filho. De fato, toda emanação parece ser ομοούσιος, ou seja, da mesma substância com o corpo do qual emana ou procede.”43

Utiliza a palavra ομοούσιος (homoousios), que significa “uma substância”, que posteriormente seria tão utilizada no concílio de Niceia para definir solenemente como o Pai e o Filho têm uma mesma natureza. Também se refere a Cristo com a expressão θεάνθρωπος (Deus-homem).

No entanto, Orígenes tem alguns textos confusos ao ponto de parecer tendencioso para o subordinacionismo. Entre aqueles que o acusam de ter caído neste erro está São Jerônimo, no entanto outros Pais da Igreja como São Atanásio e São Gregório Taumaturgo o defendem. Um dos textos onde parece ser isso é este:

“Nós, que acreditamos no Salvador quando Ele diz: ‘O Pai, que me enviou, é maior do que eu’, e por esta mesma razão não permite que se lhe aplique o apelativo de ‘bom’ em seu sentido pleno, verdadeiro e perfeito, mas sim que o atribui ao Pai dando graças e condenando aquele que glorificasse o Filho em demasia, nós dizemos que o Salvador e o Espírito Santo estão muito acima de todas as coisas criadas, com uma superioridade absoluta, sem comparação possível; mas dizemos também que o Pai está acima deles tanto ou mais do que eles estão acima das criaturas mais perfeitas.”44

Justino Mártir (100-168 d.C.)

Em diálogo com Trifão, ele se refere a Cristo como “Deus gerado pelo Pai do universo” e usa textos do Gênesis em que Deus fala em primeira pessoa do plural para mostrar a pluralidade das pessoas divinas. Ele descarta aqui que Ele estivesse falando com anjos, pois é inconcebível que o homem tenha sido criado por eles, e também descarta que estivesse falando com os elementos da terra. Conclui que estava falando com Cristo, que estava com o Pai antes de todas as criaturas. No entanto, parece mostrar tendência para o subordinacionismo.

“Amigos, vou apresentar mais um testemunho das Escrituras sobre o fato de que Deus gerou um princípio antes de todas as criaturas, uma certa potência racional de si mesmo, que também é chamada pelo Espírito Santo de Glória do Senhor, às vezes Filho, outras vezes Sabedoria; ora Anjo, ora Deus, ora Senhor, ora Palavra, e ela mesma se chama Capitão-Geral quando se apresenta em forma humana a Josué, filho de Nave. E é assim que todas essas denominações lhe vêm de servir a vontade do Pai e de ter sido gerada por vontade do Pai… Mas será a palavra da sabedoria que me prestigiará com o seu testemunho, por ser ela essa mesma Deus gerado pelo Pai do universo, que subsiste como palavra e sabedoria e poder e glória daquele que o gerou

Isso mesmo, amigos, a palavra de Deus disse por boca de Moisés, indicando-nos que o Deus que nos revelou falou da mesma maneira na criação do homem, ao dizer: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança…’ E para que não distorceis as palavras citadas e dizeis o que os vossos mestres dizem, de que Deus se dirigiu a si mesmo ao dizer ‘façamos’, da mesma maneira que nós, quando vamos fazer algo, dizemos ‘façamos’, ou que falou com os elementos, ou seja, com a terra e tudo o mais de que sabemos que o homem é composto, e a eles disse ‘façamos’; vou citar agora outras palavras do próprio Moisés, pelas quais, sem discutir, temos que reconhecer que Deus conversou com alguém que era numericamente diferente e, ao mesmo tempo, racional. Vejam aqui: E Deus disse: ‘Eis que Adão se tornou como um de nós para conhecer o bem e o mal’. Então, ao dizer ‘como um de nós’, indica o número de quem conversa entre si, e que pelo menos são dois. Porque eu não posso aceitar como verdadeiro o que é dogmatizado como heresia entre vocês, e os mestres dessas heresias não são capazes de provar que Deus fala com os anjos ou que o corpo humano é obra dos anjos. Mas esse broto, que realmente é emitido pelo Pai, estava com Ele antes de todas as criaturas e conversa com o Pai, como nos foi revelado pela Palavra através da boca de Salomão, quando nos disse que antes de todas as criaturas, esse mesmo que é chamado de sabedoria por Salomão foi gerado por Deus como princípio e prole.”45

Mais tarde, ele se refere a Cristo como Senhor e Deus.

“Demostrei amplamente que Cristo, que é Senhor e Deus, Filho de Deus, apareceu anteriormente milagrosamente como Homem e como Anjo e também na glória do fogo, como na visão da zarça e no julgamento contra Sodoma.”46

Em sua primeira apologia, ele distingue claramente e em ordem as Três Pessoas Divinas, o que descarta qualquer tendência modalista por parte de São Justino47:

“Então vamos provar que honramos justamente Jesus Cristo, que foi nosso mestre nessas coisas e nasceu para isso, o mesmo que foi crucificado sob Poncio Pilatos, procurador da Judeia durante o tempo de Tibério César, que aprendemos ser o Filho do verdadeiro Deus e a quem temos em segundo lugar, assim como o Espírito Profético temos em terceiro lugar.”48

Mais claro em distinguir a Pessoa do Pai da do Filho é no capítulo 63 e em reconhecer em Cristo aquele que falou aos Profetas e proclamou ser “O Deus de Abraão, Isaac e Jacó”:

“Porque aqueles que dizem que o Filho é o Pai, provam que nem sabem quem é o Pai nem sabem que o Pai do universo tem um Filho, que sendo o Verbo e o Primogênito de Deus, é também Deus.

Esse foi o que apareceu primeiramente a Moisés e aos outros profetas na forma de fogo ou por imagem incorpórea, e que agora, nos tempos do vosso império,… nasceu homem de uma virgem… Agora, o que foi dito a Moisés a partir da zarça: Eu sou o que sou, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó, significava que mesmo depois de mortos, esses homens continuavam sendo de Cristo mesmo.”49

Gregório Taumaturgo (213 – 270 d.C.)

Nascido em torno de 213, foi bispo de sua cidade natal, Neocesareia. Compôs um breve símbolo de fé ao qual Quasten comenta “limitando-se ao dogma da Trindade, notável por sua precisão em seus conceitos, afirmando que nunca nenhuma das Pessoas Divinas esteve sem a outra, mas sem mudança sempre existiram”.

Há um único Deus, Pai do Verbo vivente, da Sabedoria subsistente, do Poder e da Imagem eterna; Gerador perfeito do perfeito Gerado, Pai do Filho Unigênito. Há um único Senhor, Único do Único, Deus de Deus, Figura (caráter) e Imagem da Divindade, Verbo Eficiente, Sabedoria que abraça todo o universo e Poder que cria todo o mundo, Filho verdadeiro do verdadeiro Pai, Invisível do Invisível, Incorruptível do Incorruptível, Imortal do Imortal, Eterno do Eterno. E há um único Espírito Santo, que tem sua subsistência de Deus e foi manifestado aos homens pelo Filho: Imagem do Filho, Imagem Perfeita do Perfeito, Vida, Causa dos viventes, Fonte Sagrada, Santidade que comunica a santificação, em quem se manifestam Deus Pai, que está acima de todos e em todos, e Deus Filho, que está através de todos. Há uma Trindade perfeita, em glória e eternidade e majestade, que não está dividida nem separada. Portanto, não há nada criado ou escravo na Trindade, nem tampouco nada sobrenatural, como se não tivesse existido anteriormente e tivesse sido introduzido mais tarde. E assim, o Filho nunca falhou com o Pai, nem o Espírito Santo com o Filho, mas, sem variação ou mudança, a mesma Trindade sempre existiu.”50

Novaciano (? – 258 d.C.)

Um de seus escritos, Sobre a Trindade (De Trinitate) foi escrito em uma data bastante anterior a 250 d.C.

“O Filho, por ser gerado pelo Pai, sempre está no Pai. Quando digo ‘sempre’, não quero dizer que ele é ingênito. Afirmo, ao contrário, que ele nasceu. Mas aquele que nasceu antes de todo tempo, deve se dizer que sempre existiu no Pai, pois não se pode fixar datas para aquele que é anterior a todos os tempos. Ele está eternamente no Pai, pois do contrário o Pai não seria sempre Pai. Além disso, o Pai é anterior a Ele, pois o Pai deve ser necessariamente antes do Filho, como Pai; pois Ele não conhece origem, deve existir necessariamente antes do que tem origem. O Filho, portanto, é necessariamente anterior ao Pai, pois Ele mesmo reconhece que existe no Pai; Ele tem um origem, pois nasceu, e pelo Pai de uma maneira misteriosa; no entanto, apesar de ter nascido e ter assim origem, é em tudo semelhante (vicinus) ao Pai, precisamente devido ao seu nascimento, pois nasceu do Pai, que é o único que não tem origem. Ele, portanto, quando o Pai quis, procedeu do Pai, e aquele que estava no Pai, porque procedia do Pai, não sendo outra coisa que a Substância divina. Su nome é o Verbo, por meio do qual foram feitas todas as coisas, e sem o qual nada foi feito. Porque todas as coisas são posteriores a Ele, pois vêm Dele, e, consequentemente, Ele é anterior a todas as coisas (mas depois do Pai), considerando que todas as coisas foram feitas por Ele. Ele procedeu do Pai, por cuja vontade todas as coisas foram feitas. Deus, com toda certeza, procedente de Deus, constituindo a segunda Pessoa depois do Pai, por ser Filho, sem despojar por isso o Pai da unidade da divindade.”51

No obstante, Novaciano mostrou uma espécie de subordinação, pois, apesar de reconhecer que as Pessoas divinas têm a mesma substância, também afirmou que o Espírito Santo era inferior a Cristo e Cristo era inferior ao Pai, de quem diz que aparece “como o único Deus verdadeiro e eterno; Ele é a única fonte deste poder da divindade. Embora seja transmitido ao Filho e concentrado nele, volta de novo ao Pai através de sua comunhão de substância”:

“O Paráclito recebeu sua mensagem de Cristo. Mas se ele a recebeu de Cristo, Cristo é superior ao Paráclito, pois o Paráclito não teria recebido de Cristo se não fosse inferior a Cristo. Essa inferioridade do Paráclito prova que Cristo, de quem ele recebeu sua mensagem, é Deus. Aqui temos, portanto, um poderoso testemunho da divindade de Cristo. Vemos, de fato, que o Paráclito é inferior a Ele e recebe de Ele a mensagem que entrega ao mundo.”52

Cipriano de Cartago (200 – 258 d.C.)

Cipriano de Cartago declara a divindade de Cristo diversas vezes:

“Se Cristo Jesus, nosso Senhor e Deus, é Ele mesmo o sumo sacerdote de Deus Pai.”53

“Se alguém pudesse ser batizado pelos hereges, ele poderia certamente receber o perdão de seus pecados. Se ele tivesse recebido o perdão dos pecados, ele poderia ser santificado. Se ele fosse santificado, ele poderia ser feito um templo de Deus. Se ele fosse feito templo de Deus – agora eu pergunto: De que Deus? Do Criador? Mas isso não é possível, porque ele não acredita Nele. De Cristo? Quem negar que Cristo é Deus não pode se tornar o seu templo. Do Espírito Santo? Desde que Três são Um, como seria possível para o Santo Espírito ser reconcilhado com aquele que é inimigo do Filho ou do Pai?”54

“Depois da ressurreição, quando o Senhor enviou os Apóstolos às nações, Ele ordenou que os gentios fossem batizados no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo… Cristo mesmo ordenou que as nações sejam batizadas na completa e unida Trindade.”55

Dionísio de Roma (? – 268 d.C.)

Sendo Papa de 259 a 268, ele lutou contra o modalismo e o subordinacionismo. Quando foi apresentada uma acusação contra Dionísio de Alexandria (bispo) sobre expressões incorretas sobre a Trindade, surgiu uma controvérsia conhecida como “a controvérsia dos dois Dionísios”. O Papa convocou um sínodo em 260 para resolver o assunto. Em seu próprio nome e em nome do sínodo, escreveu uma carta na qual condena a doutrina modalista de Sabelio e também as opiniões marcionistas que dividiam a monarquia divina em três hipóstases distintas, também a quem representava o Filho de Deus como uma criatura.

Na carta para Dionísio de Alexandria, o Papa chama de blasfêmia a opinião de que o Filho é o próprio Pai (modalismo), mas também critica a doutrina aparentemente apoiada por catequistas de Dionísio de Alexandria, que afirmam que cada Pessoa Divina tem uma natureza distinta da outra.

“Ouvi dizer que alguns de seus catequistas e mestres da palavra divina lideram este princípio [referendo-se aos hereges que dividem as naturezas das Pessoas Divinas]. Eles são tais que falam diametralmente à opinião de Sabelio. Para ele, em sua blasfêmia, diz que o Filho é o Pai, e vice-versa. Mas eles proclamam que há de alguma forma três Deuses, quando dividem a Santa Unidade em três substâncias diferentes entre si e completamente separadas.”56

Ele também declara que o arrianismo é uma blasfêmia por afirmar que Cristo é um ser criado, e explica que por ser Cristo a Palavra, Sabedoria e poder de Deus, não poderia haver um momento em que o Pai existisse sem Ele.

É blasfêmia, então, e não comum mas a pior, dizer que o Senhor de alguma forma foi criação. Mas se o Filho veio a ser, então Ele não o foi, mas se, como Ele mesmo diz, Ele está no Pai, e se você conhece a Escritura Divina que diz que Cristo é a Palavra e a Sabedoria e o Poder, e esses atributos são poderes de Deus, então Ele sempre existiu. Mas se o Filho veio a ser, havia uma época em que esses atributos não existiam, e consequentemente, havia um tempo em que Deus esteve sem eles, o que é completamente absurdo.”57

“É necessário, no entanto, que a palavra divina [Jesus Cristo] esteja unida a Deus do Universo; e o Espírito Santo deve respeitar e morar em Deus. Portanto, a Trindade Divina deve ser reunida em uma, uma cúspide, como se fosse – quero dizer, o Deus Onipotente do Universo.”58

“Nem então podemos dividir em três cabeças divinas a maravilhosa e divina monarquia, nem descreditar chamando ‘obra’ a dignidade e excelente majestade de nosso Senhor, mas devemos acreditar em Deus, o Pai Todopoderoso, e em Jesus seu Filho, e no Espírito Santo, e defendemos que ao Deus do universo a Palavra está unida.”59

Depois de ter estudado os principais testemunhos patrísticos anteriores ao concílio de Niceia, não resta mais do que descartar as especulações das seitas que assumem como uma novidade tardia a doutrina Trinitária produto das influências pagãs. A Igreja foi fiel em reconhecer que há um só Deus, sendo o Pai Deus, o Filho Deus, e o Espírito Santo Deus, e esta verdade era compreendida e ensinada com maior ou menor clareza na era pós-apostólica e pré-nicena.

O consenso dos padres rejeitava abertamente tanto o arrianismo (que afirmava que Jesus Cristo era um deus menor criado subordinado ao Pai, que alguma vez não existiu) e o modalismo (que afirmava que havia uma única Pessoa Divina em Deus, sendo o Filho o Pai e vice-versa, mas manifestados de maneiras diferentes).

Certamente, alguns padres não compreenderam completamente o mistério trinitário e tendiam ao subordinacionismo em maior ou menor grau, o que é totalmente compreensível em uma matéria tão complexa. É precisamente através de conflitos graves como o arrianismo e outras heresias que a Igreja tem a oportunidade de aprofundar essas verdades de fé.

Notas de rodapé

  1. Wathtower Library 2007, Testemunhas de Jeová – Folheto grande – Como a doutrina da Trindade se desenvolveu?
  2. Didaché, VII,1
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, BAC 65, Quinta edição, Madrid 1985, p. 84
  3. Martírio de Policarpo, XXII,3
    Ibid. p. 688
  4. O Pastor de Hermas, Comparação Quinta 6,5
    Ibid. p. 1020
  5. Camelo Granado, Los mil nombres de Jesús, Narcea S.A. de Ediciones, p. 25
  6. Ignacio de Antioquia, Carta aos Efésios I
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, BAC 65,  Quinta Edición, Madrid 1985, p. 447
  7. Ignacio de Antioquía, Carta aos Efésios VII,2
    Ibid. p. 451
  8. Ignacio de Antioquía, Carta aos Efésios XVIII,2
    Ibid. p. 457
  9. Ignacio de Antioquía, Carta aos Romanos I
    Ibid., p. 474
  10. Ignacio de Antioquía, Carta aos Romanos IV,3
    Ibid., p. 477
  11. Ignacio de Antioquía, Carta aos Esmiornitas I,1
    Ibid. p. 488
  12. Ignacio de Antioquía, Carta a Policarpo III,2
    Ibid., p. 498-499
  13. Arístides, Apología XV,2
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apologetas Griegos, BAC 116, , Terceira Edição, Madrid 1996, p. 130
  14. Atenágoras de Atenas, Súplica em favor dos cristãos 10
    Ibid. p.  660-661
  15. Ibid. p. 661
  16. Tácito, Discurso contra os Gregos 21
    Ibid. p. 602
  17. Melitão de Sardes, Homilia sobre a Paixão 8-10
    Johannes Quasten, Patrología I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 240-241
  18. Melitão de Sardes, Homilia sobre a Paixão 82
    Ibid., p. 241
  19. Melintão de Sardes, Fragmentos em Anastácio o Sinaita, A guia, CH. 13
    William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. I, The Liturgical Press, Minnesota 1970, p. 81
  20. Ireneu de Lyon, Contra as heresias I,10,1-2
  21. Ireneu de Lyon, Contra as heresias II,28,6
  22. Ireneu de Lyon, Contra as heresias III,19,2
  23. Ireneu de Lyon, Contra as heresias III,19,2-3
  24. Ireneu de Lyon, Contra as heresias IV,20,3
  25. Ireneu de Lyon, Contra as heresias II,28,8
  26. Ireneu de Lyon, Contra as heresias V,18,2
  27. Clemente de Alexandria, Exortação aos Gregos 1,7,1
    William A. Jurgens,  The Faith of the Early Fathers, Vol. I, The Liturgical Press, Minnesota 1970, p. 176
  28. Clemente de Alexandria, Exortação aos Gregos 10,110,1
    Ibid., p.177
  29. Clemente de Alexandria, O Pedagogo I,2
    New Advent Encyclopedia, http://www.newadvent.org/fathers/02091.htm
  30. Teófilo de Antioquia, Ad Autolycum 2,15
    Johannes Quasten, Patrología I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 236
  31. Teófilo de Antioquia, Ad Autolycum 2,10
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apologetas Gregos, BAC 116, Terceira Edição, Madrid 1996, p. 796
  32. Teófilo de Antioquia, Ad Autolycum 2,22
    Ibid. p. 813
  33. Tertuliano, De pudicitia 21   
    NewAdvent Encyclopedia, http://www.newadvent.org/fathers/0407.htm
  34. Tertuliano, Contra Práxeas 2
    NewAdvent Encyclopedia,  http://www.newadvent.org/fathers/0317.htm
  35. Ibid.
  36. Tertuliano, De pudicitia 4
    Johannes Quasten, Patrología I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 621
  37. Ibid.
  38. Tertuliano, Contra Práxeas 12
    Ibid., p. 622
  39. Ibid.
  40. Tertuliano, Contra Práxeas 7
    New Advent Encyclopedia, http://www.newadvent.org/fathers/0317.htm
  41. In Ioh. 10,39,270; 6,33,166; In Ies. Hom. 1,4,1
  42. De princ. l,2,9s; 2; 4,4,1; In Rom. 1,5
  43. Orígenes, In Hebr. frag. 24,359
    Johannes Quasten, Patrología I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 389-390
  44. Orígenes, In Ioh. 13,25
    Ibid., p. 390
  45. Justino, Diálogo com Trifão, 61-62
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apologetas Griegos, BAC 116, Tercera Edición, Madrid 1996, pág. 409-412
  46. Justino, Diálogo com Trifão, 128
    Ibid., p. 526
  47. O modalismo não vê o Pai, o Filho e o Espírito Santo como Pessoas divinas, mas como manifestações de um único Deus.
  48. Justino, Apologia I, 13,3
    Ibid., p. 194
  49. Justino, Apologia I, 63,15
    Daniel Ruiz Bueno, Padres Apologetas Griegos, BAC116, Terceira Edição, Madrid 1996, p. 254-255
  50. Gregório de Taumaturgo, Exposição da féJohannes Quasten, Patrología I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 433
  51. Novaciano, Sobre a Trindade, 31
    Johannes Quasten, Patrología I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 529
  52. Novaciano, Sobre a Trindade, 18
    Ibid., p. 531
  53. Cipriano de Cartago, Carta 63,14
    William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Vol. I, The Liturgical Press, Minnesota 1970, p. 232-233
  54. Cipriano de Cartago, Carta 73,12
    Ibid., p. 238
  55. Cipriano de Cartago, Carta 73,18
    Ibid.
  56. Carta a Dionisio de Roma a Dionisio de Alejandría 1
    William A. Jurgens,  The Faith of the Early Fathers, Vol. I, The Liturgical Press, Minnesota 1970, p. 249
  57. Ibid.
  58. Ibid., 2
  59. Ibid., 3
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