A Doutrina da Santíssima Trindade na Bíblia

Uma das verdades mais profundas e importantes da fé cristã é o dogma da Santíssima Trindade. A Fé Trinitária ensina a existência de um só Deus, em Três Pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Uma mesma natureza divina, mas três Pessoas distintas.

Atualmente, o número de denominações protestantes que rejeitam o dogma Trinitário aumenta consideravelmente, a maioria das quais adotou algumas das antigas heresias cristológicas.

Como entender a Trindade?

Os teólogos esclarecem que as palavras “natureza” e “pessoa”, não são tomadas aqui no sentido comum dos termos, mas de acordo com o linguaje filosófico, que é mais preciso. A natureza ou essência dos seres é o que faz as coisas serem o que são; o princípio que as capacita a agir como tal (por exemplo, a natureza do homem é ser um animal racional composto de alma e corpo). A pessoa, por outro lado, é o sujeito que age e, em cada homem, há uma única natureza e uma única pessoa. Em Deus, no entanto, isso não acontece: uma única Natureza sustenta uma Trindade de Pessoas.

Por isso, a inteligência humana é impossível de compreender o mistério da Santíssima Trindade. O esforço racional dos teólogos (entre os quais temos Santo Tomás de Aquino) tentou ilustrá-lo da seguinte maneira:

Como as três divinas pessoas não se distinguem nem pela sua Natureza, nem por suas perfeições, nem por suas obras exteriores, distinguem-se apenas por sua origem.

Eles não se distinguem pela sua natureza, pois têm uma natureza em comum, a Natureza divina. Assim, eles não são três deuses, mas um só Deus.

Eles não se distinguem por suas perfeições, pois essas se identificam com a Natureza divina. Assim, nenhuma das três Pessoas é mais sábia ou poderosa, mas todas têm sabedoria e poder infinitos; nem uma é anterior às outras, mas todas são igualmente eternas.

As tres divinas pessoas não se distinguem pelas suas obras externas, pois todas possuem a mesma Omnipotência, então o que uma faz em relação à criatura é o que as outras duas fazem também.

Elas se distinguem apenas pelo seu origem, pois o Pai não provém de nenhuma pessoa; o Filho é gerado pelo Pai; e o Espírito Santo procede ao mesmo tempo do Pai e do Filho. Isso é o que impede que uma Pessoa se confunda com as outras.

Ricardo Sada Fernández explica isso de uma forma muito didática em seu estudo da Trindade:

Em primeiro lugar, consideremos a Deus Pai. Ele, com sua infinita sabedoria, ao se conhecer, formula um pensamento de si mesmo. Nós muitas vezes fazemos algo semelhante quando pensamos em nós mesmos e nos formamos um conceito sobre o próprio eu, ou seja, “aquilo que somos para nós mesmos”. No entanto, há uma grande diferença entre o nosso próprio conhecimento e o de Deus sobre si mesmo. O nosso próprio conhecimento é imperfeito e incompleto (“ninguém é juiz em causa própria”). E mesmo se nos conhecêssemos perfeitamente – ou seja, se o nosso conceito sobre o próprio eu fosse uma clara reprodução de nós mesmos – seria apenas um pensamento que não sairia do nosso interior, sem existência independente, sem vida própria. O pensamento deixaria de existir, até mesmo na minha mente, assim que eu me voltasse para outro assunto.

Quando se trata de Deus, as coisas são muito diferentes. Seu pensamento sobre si mesmo é perfeitíssimo: abrange completamente todos os aspectos de sua infinitude. Mas um pensamento perfeitíssimo, para ser verdadeiramente perfeito, deve ter existência própria (se pode desaparecer, faltaria essa perfeição). Seu pensamento é tão infinitamente completo e perfeito que o reproduziu com existência própria. A imagem que Deus vê de si mesmo, a Palavra silenciosa com que eternamente se expressa a si mesmo, deve ter uma existência própria, distinta. A esse Pensamento vivo em que Deus se expressa a si mesmo perfeitamente chamamos Deus Filho. Deus Pai é Deus conhecendo a si mesmo; Deus Filho é a expressão do conhecimento que Deus tem de si. Por isso, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade é chamada Filho, precisamente porque é gerado pela eternidade, gerado na mente divina do Pai.

Além disso, como essa geração é intelectual, é chamada “Verbo”, ou seja, “Palavra”. Deus Filho é a “Palavra interior” que Deus Pai pronuncia quando sua infinita sabedoria conhece sua essência infinita.

Agora, Deus Pai (Deus conhecendo a si mesmo) e Deus Filho (o conhecimento de Deus sobre si mesmo) contemplam a natureza que ambos possuem em comum. Ao se verem (estamos falando, claro, de forma humana), contemplam naquela natureza o belo e o bom em grau infinito. E como o belo e o bom produzem amor, a Vontade divina move ambas Pessoas a um ato de amor infinito, da Una para a Outra. Como o amor de Deus por si mesmo, assim como o conhecimento de Deus por si mesmo, são da mesma natureza divina, tem que ser um amor vivo. Esse amor infinitamente perfeito, infinitamente intenso, que flui eternamente do Pai e do Filho é o que chamamos Espírito Santo “que procede do Pai e do Filho”. É a terceira pessoa da Santíssima Trindade. O Espírito Santo é o “Amor Subsistente”, o “Amor feito Pessoa”.

Prefigurações da Trindade no Antigo Testamento até o Novo Testamento

“E Deus disse: Façamos o ser humano à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.”(Gênesis 1,26)

Assim como a Revelação Divina tem sido progressiva, também tem sido a forma como Deus tem se revelado a si mesmo para os homens.

A Tradição cristã tem visto nos textos em que Deus fala em plural (Gênesis 11,5-9; Isaías 6,8), como um diálogo entre as Pessoas Divinas. Note-se que diz: “Façamos…” e não “farei”.

Certamente, esse texto não diz explicitamente para quem Deus estava falando, mas deduz-se que é entre as Pessoas Divinas, já que quem quer que fosse a quem Deus estivesse falando, participou na obra da criação (pois não teria dito “façamos” se a quem estivesse falando seria apenas um observador, assim como você não diria a ninguém “vamos comer” para que só vejam você comendo).

O homem é criado à imagem de quem cria, fato que fica evidente quando Deus fala em fazer o ser humano “à nossa imagem e semelhança”, e quando diz “à imagem de Deus o criou”.

A interpretação de que, nesse texto, Deus estava falando com anjos apresenta múltiplas dificuldades. Primeiro, porque a Escritura declara que Deus fez tudo sozinho e sem ajuda alguma (e isso exclui os anjos).

“Assim diz o Senhor, o teu Redentor, que te formou no ventre: Eu sou o Senhor, que fiz tudo, que sozinho estendi os céus, que espalhei a terra, sem auxílio algum.” (Isaías 44,24)

“Sim, é minha mão que fundou a terra, e a minha destra que estendeu os céus. Eu os chamo, e todos eles se apresentam.” (Isaías 48,13)

“Tu esqueces o Senhor, teu Criador, que estendeu os céus e fundou a terra..” (Isaías 51,13)

Dedu-se que a quem Deus falava também era Yahveh e Deus, o que é confirmado no Evangelho de João quando diz:

“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. Ela estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ela, e sem ela nada do que existe foi feito.” (João 1,1-3)

Este texto, que também se refere ao momento da criação, é um pouco mais explícito e já podemos mencionar duas coisas:

A quem quer que Deus falasse, um deles era a sua Palavra (logos), por meio da qual “tudo foi feito” e sem a qual “nada do que existe foi feito”.

A Palavra (logos) também não foi criada, pois, se tudo o que pode ser rotulado como “feito” foi feito através da Palavra, seria contraditório pensar na própria Palavra como “feita” por si mesma.

A partir de tudo o que foi mencionado, pode-se concluir que aquele que é chamado de Palavra participou da obra criativa e, portanto, também é Yahveh.

Ao longo da história, essa explicação foi dada por vários Pais da Igreja primitiva. São Ireneu, bispo e discípulo de São Policarpo, que por sua vez era discípulo do Apóstolo São João, explica no século II:

Que o Verbo, ou seja, o Filho, esteve sempre com o Pai, de várias maneiras o demos-tramos. E que também sua Sabedoria, ou seja, o Espírito, estava com Ele antes da criação.”1

Portanto, não são os anjos que nos fizeram ou nos formaram. Também não é possível que eles possam fazer uma imagem de Deus; nem qualquer outro seria capaz de fazê-la, a não ser o Verbo de Deus; nem tampouco nenhum poder, que não seja o Pai de todos, poderia realizá-la. Deus não tinha necessidade de ninguém para executar o que Ele mesmo havia predeterminado fazer, como se não tivesse mãos próprias. De fato, sempre estão com Ele o Verbo e a Sabedoria, o Filho e o Espírito, por meio dos quais e em quem, livre e espontaneamente, fez todas as coisas. São a eles a quem o Pai se dirige dizendo: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.”2

Tertuliano mantém a mesma ideia:

“Se a pluralidade na Trindade te escandaliza, como se não estivesse ligada à simplicidade da união, pergunto-te: como é possível que um ser que é pura e absolutamente único e singular fale em plural: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’? Não deveria ter dito mais apropriadamente: ‘Eu faço o homem à minha imagem e semelhança’, já que é um ser único e singular?

No entanto, no trecho que se segue, lemos: ‘Eis que o homem se tornou como um de nós’. Ou Deus nos engana ou se zomba de nós ao falar em plural, se Ele é único e singular; ou então, ele estaria se dirigindo aos anjos, como interpretam os judeus, porque eles não reconhecem o Filho? Ou ainda, seria porque Ele era ao mesmo tempo Pai, Filho e Espírito que falava em plural, considerando-se múltiplo?

Certamente, a razão é que Ele tinha ao seu lado uma segunda pessoa, seu Filho e seu Verbo, e uma terceira pessoa, o Espírito no Verbo. Por isso, ele usou propositalmente o plural: “Façamos… nossa imagem… um de nós”. De fato, com quem criava o homem? À semelhança de quem o criava? Ele falava, por um lado, com o Filho, que um dia deveria se vestir de carne humana; por outro, com o Espírito, que um dia deveria santificar o homem, como se falasse com tantos ministros e testemunhas.”3

São Agostinho em sua obra Cidade de Deus explica:

“Também se poderia entender dos anjos aquela expressão, quando Deus criou o homem, em que diz: Façamos o homem, porque ele não disse ‘farei’, mas acrescenta: à nossa imagem e semelhança, não é lícito acreditar que o homem foi criado à imagem dos anjos, ou que é a mesma imagem a dos anjos e a de Deus, e por isso se entende bem ali a pluralidade da Trindade.”4

Nos textos escriturísticos, quando se diz que Deus é “um”, é utilizada a palavra hebraica ejad, que significa “um formado por muitos”, em vez da palavra vajid, “unidade”. Esta palavra, apesar de significar “um”, preserva a ideia de unidade e, ao mesmo tempo, de pluralidade de “um formado por vários” (um único Deus em três pessoas divinas). A ideia da pluralidade das pessoas em Deus não contradiz sua unicidade.

Os Santos Pais da Igreja viram o Trisagion como uma louvação ao Deus Uno e Trino, no qual os anjos louvam e glorificam dizendo “Santo, Santo, Santo”. Três vezes Santo, porque são três as pessoas divinas, uma vez Senhor, porque há um único Deus.

“Os querubins e serafins com vozes incansáveis louvam e dizem: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos (Isaías 6,3). Eles não dizem isso uma única vez, para que você não acredite em uma única pessoa, não dizem duas vezes, para que você não exclua o Espírito, não dizem ‘santos’, para que você não pense em pluralidade, mas repetem três vezes e dizem a mesma coisa, para que você também compreenda na hinária a distinção da Trindade e a unidade da divindade. Quando eles dizem isso, eles louvam a Deus. Nós também não encontramos algo mais precioso para louvar a Deus do que chamá-lo santo.”5

“Que a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vocês.” (2 Coríntios 13,13)

“E alguns de vocês eram assim. Mas foram lavados, foram santificados, foram justificados pelo nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus.” (1 Coríntios 6,11)

Os primeiros cristãos não hesitavam em saudar em suas cartas com uma tripla invocação em que se uniam o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Outra característica fundamental na fé dos primeiros cristãos era a certeza de que os carismas entregues à Igreja procediam da Trindade, e havia neles a absoluta convicção de que sua vida de fé edificada pelos carismas divinos era alimentada pelas três Pessoas divinas:

“Há diversidade de carismas, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera em todos.” (1 Coríntios 12,4-6)

Não podemos terminar sem mencionar a fórmula trinitária do batismo:

“Então, vão e façam discípulos de todas as nações batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.” (Mateus 28,19)

No texto anterior, temos Cristo ressuscitado enviando seus discípulos para batizar todos os povos “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Não seria coerente pensar que Cristo utiliza uma fórmula de batismo que associa a Deus com duas simples criaturas, daí que a fórmula de batismo coloca o Pai, o Filho e o Espírito Santo no mesmo nível, como as Três Pessoas da Trindade.

A Divindade de Cristo

Não são poucas as evidências da divindade de Cristo que podem ser encontradas na Escritura. Cristo, segunda Pessoa da Trindade, é também Deus e consustancial com Deus Pai.

Talvez um dos textos mais explícitos tenhamos no Evangelho de João, onde o Apóstolo se refere à Palavra feita carne (Cristo) e a declara Deus:

“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. Ela estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ela e sem ela nada do que existe foi feito.” (João 1,1-2)

Cristo também é chamado de “Deus conosco”, “Deus forte” e até mesmo simplesmente “Deus”.

“Tudo isso aconteceu para que se cumprisse a profecia do Senhor pelo profeta: Vejam, a virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe darão o nome de Emmanuel, que significa: ‘Deus conosco’.” (Mateus 1,22-23)

“Porque um ser humano nasceu para nós, um filho nos foi dado. O seu domínio será sobre o seu ombro, e seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz.” (Isaías 9,5)

“Mas do Filho: Teu trono, ó Deus, é pelos séculos dos séculos; e: O cetro de tua realeza é um cetro de justiça.” (Hebreus 1,8)

“E novamente, quando introduz o seu Primogênito no mundo, diz: ‘E adorem-no todos os anjos de Deus’.” (Hebreus 1,6)

“Mas sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu a inteligência para conhecermos aquele que é verdadeiro. E nós estamos em aquele que é verdadeiro, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna.” (1 João 5,20)

Porque está nele que habita corporalmente toda a plenitude da divindade. E vós estais completos nele, que é a cabeça de todo principado e autoridade.” (Colossenses 2,9-10)

Cristo, como a Segunda Pessoa da Trindade, compartilha a glória do Pai:

“E agora, Pai, glorifica-me junto a ti com a glória que eu tinha junto a ti antes que o mundo existisse.” (João 17,5)

A fé católica rejeita a doutrina herética que ensina que Cristo é um deus menor criado, distinto e subordinado a Deus Pai. Esta doutrina, conhecida como arrianismo e adotada hoje em dia por muitas seitas (como os testemunhas de Jeová), vê a figura de Cristo de forma semelhante a como os gregos na cultura pagã viam Hércules em relação a Zeus.

O próprio Tomé, que, após duvidar, reconheceu a Cristo como Senhor e Deus, não o fez pensando que Ele era um “deus” distinto e separado do Pai:

“Então, disse a Tomé: ‘Coloca o dedo aqui e vê as minhas mãos; estende a tua mão e coloca-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente’. Disse Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ Disse-lhe Jesus: ‘Porque me viste, Tomé, crêste. Bem-aventurados os que não viram e creram.’” (João 20,27-28)

Esta explícita aceitação da divindade de Cristo na frente de toda a assembléia apostólica não causou nenhum tipo de rejeição, e, se Cristo não fosse Deus, teria sido um ato de grosseira idolatria.

Há também aqueles que tentam ver nas palavras de São Tomás uma expressão de mera surpresa no estilo de “Oh meu Deus!”, apesar do texto grego não deixar dúvidas, pois essas palavras se referem de forma inequívoca a Jesus Cristo. É Cristo, nessa oração, a quem Tomás se refere como seu Senhor e seu Deus.

No entanto, isso não significa que a divindade de Cristo tenha sido completamente compreendida pelos Apóstolos desde o início. O próprio Apóstolo Filipe, apesar do tempo passado com Cristo, no início não tinha consciência disso.

“Se me conhecem, também conheceriam o meu Pai. Desde agora o conhecem e o viram. Filipe lhe disse: Senhor, mostra-nos o Pai, e nos basta. Jesus lhe disse: Tanto tempo estou convosco, e ainda assim não me conheces, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como dizes: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e o Pai em mim? As palavras que eu vos digo, não as falo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em mim, é quem faz as obras. Crede-me que estou no Pai e o Pai em mim. Se não, crede pelas próprias obras.” (João 14,7-11)

“Eu e o Pai somos um.” (João 10,30)

A igualdade do Pai e do Filho quanto à sua natureza divina é expressa no Evangelho, ao ponto de se ordenar honrar o Filho como se honra o Pai. Se Jesus Cristo não fosse também Deus, isso seria um ato de idolatria:

“Porque o Pai não julga a ninguém, mas deu ao Filho o poder de julgar, para que todos honrem o Filho, como honram o Pai. Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida.” (João 5,22-24)

São Agostinho, partindo deste texto da Escritura, explica de forma clara a divindade do Filho e sua igualdade com o Pai quanto à sua natureza.

“Não há na Trindade aquela diferença que esses querem estabelecer, porque na Trindade a natureza é idêntica, assim como o é o poder. Isto é o que disse o Filho: A fim de que todos honrem o Filho como honram o Pai; e os que querem viver piamente, que adorem o Senhor Deus seu e que somente a ele sirvam, o que foi mandado pela lei divina aos antigos pais. E não pode ser de outro modo, pois temos que servir ao único Senhor Deus nosso com a reverência que se deve a Deus….Digo que isto de forma alguma pode se verificar se toda a Trindade não é o mesmo Senhor Deus nosso.”6

Os Títulos da Divindade

Cristo, como verdadeiro Deus, ostenta títulos que somente Deus possui. Assim como o Pai e o Espírito Santo, é o Primeiro e o Último, o Alfa e o Omega e o Fim de tudo.

“Assim diz o Senhor, o rei de Israel, e o seu Redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o primeiro e o último, e fora de mim não há Deus.” (Isaías 44,6)

Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, o que é, o que era e o que há de vir, o Todo-Poderoso.” (Apocalipse 1,8)

“Quando o vi, caí aos seus pés como morto. Ele pôs a sua mão direita sobre mim, dizendo: ‘Não temas, sou eu, o Primeiro e o Último, o que vive; estive morto, mas agora estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da Morte e do Hades’.” (Apocalipse 1,17-18)

“Ao anjo da Igreja em Éfeso escreve: Isso diz o que é, o que era e o que há de vir, o Alfa e o Omega, o primeiro e o último, o que estava morto e tornou a viver.” (Apocalipse 2,8)

Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim. Bem-aventurado aquele que guarda as palavras da profecia deste livro. Eu, Jesus, enviei o meu anjo para dar testemunho a vós dessas coisas para as igrejas. Eu sou a raiz e a descendência de Davi, a estrela resplandecente da manhã. O Espírito e a noiva dizem: Vem. E quem ouve, diga: Vem. E quem tem sede, venha; e quem quiser, tome de graça a água da vida. Eu, Jesus, envio a minha mensagem a quem tem ouvidos, para ouvir o que o Espírito diz às igrejas.” (Apocalipse 22,13-16)

Os três textos anteriores são particularmente claros, porque é Jesus quem fala e quem utiliza esses títulos.

Cristo, assim como o Pai, é Deus de Deuses, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores:

“Porque o Senhor, o teu Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção de pessoas, nem recebe suborno.” (Deuteronômio 10,17)

Dar graças ao Deus dos deuses, porque o seu amor é eterno; dar graças ao Senhor dos senhores, porque o seu amor é eterno.” (Salmo 136,2-3)

“Eles farão guerra ao Cordeiro, mas o Cordeiro, como é ‘Senhor dos senhores e Rei dos reis’, os vencerá em união com os seus, os chamados e escolhidos e fiéis.” (Apocalipse 17,14)

“E sobre o seu manto e sobre o seu seio está escrito o nome: REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES.” (Apocalipse 19,16)

Objeções contra a Divindade de Cristo

Argumento nº 1 – Cristo diz “O Pai é maior do que eu”

“Se me amassem, certamente vos alegrarias, (porque disse) que vou para o Pai; porque o Pai é maior do que eu.” (João 14,28)

Este texto foi, em sua época, um dos mais utilizados pelos arrianos para negar a igualdade de Cristo com o Pai, e um dos mais utilizados hoje em dia pelos Testemunhas de Jeová.

A dificuldade radica na incompreensão da doutrina trinitária. Ela ensina que Cristo, embora seja uma única Pessoa, tem duas naturezas (a humana e a divina). Isso quer dizer que, apesar de antes da encarnação Cristo ser somente Deus, depois desta Ele se tornou verdadeiramente homem, sem deixar de ser Deus.

Sendo Jesus Cristo uma pessoa mas com duas naturezas, podem ser aplicadas a Ele as propriedades que correspondem tanto à sua natureza humana quanto à sua natureza divina. Neste sentido, encontramos no Novo Testamento textos onde é sugerida uma subordinação de Cristo em relação ao Pai, enquanto em outros é sugerida uma perfeita igualdade entre ambos.

São Agostinho explica sobre isso:

“Aqueles que dizem que o Filho é inferior ao Pai apóiam sua sentença nas palavras do Senhor quando diz: O Pai é maior do que eu. Porém, a verdade demonstra que, nesse sentido, o Filho é também inferior a si mesmo. E como não haveria de ser inferior a si mesmo se se aniquilou tomando forma de escravo? No entanto, ao vestir a natureza de escravo não perdeu a natureza de Deus, na qual é igual ao Pai. Se, portanto, tomo a forma de servo sem perder sua forma divina -em sua forma de servo e em sua forma de Deus é sempre o Filho unigênito do Pai, em sua forma divina igual ao Pai, e em sua forma de servo, mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem, quem não vê que, em sua forma de Deus, é superior a si mesmo e, em sua forma de escravo, a si mesmo inferior?7

No entanto, há outros textos no Novo Testamento que falam da perfeita igualdade do Filho e do Pai:

“Por isso os judeus procuravam ainda mais matá-lo, porque não só quebrantava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus. Então Jesus respondeu-lhes: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho não pode fazer nada por si mesmo, senão o que vê o Pai fazer; pois o que ele faz, o mesmo o faz o Filho.

Porque o Pai ama o Filho e lhe mostra todas as coisas que ele mesmo faz; e maiores obras do que estas lhe mostrará, de modo que vós vos maravilheis. Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e os vivifica, assim também o Filho vivifica os que quer. Porque o Pai não julga a ninguém, mas deu todo o julgamento ao Filho, para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou.” (João 5,18-23)

Neste texto, observamos que:

1) Os judeus queriam matar Cristo, porque Ele se igualava a Deus (versículo 18)

2) Cristo lhes dá a entender que Ele não é um Deus separado do Pai, pois não faz nada por conta própria (versículo 19)

3) Em seguida, temos uma declaração explícita de onipotência, onde Jesus declara que aquilo que o Pai faz Ele também pode fazer (versículo 19)

4) Por fim, vemos uma declaração da igualdade entre o Pai e o Filho, declarando a vontade do Pai de que todos honrem o Filho como honram o Pai (não mais, não menos).

Uma explicação excelente, novamente, recebemos da pena de São Agostinho:

“A pupila humana não pode ver de modo algum a divindade, e aqueles que a contemplam não são homens, mas superhomens. Então, com pleno direito devemos entender do Deus Trindade as palavras bem-aventurado e único poderoso, manifestando a vinda de nosso Senhor na hora certa (1 Timóteo 6,15). A expressão: o único que possui a imortalidade (1 Timóteo 6,16) oferece o mesmo sentido daquela outra: O único que opera prodígios (Salmo 71,18).

Desire saber como meus adversários interpretam isso, pois se aplicam apenas ao Pai, como pode ser verdadeira a afirmação do Filho quando diz: ‘Tudo o que o Pai faz, o Filho também faz?’ Há, talvez, alguma coisa mais milagrosa entre os milagres do que ressuscitar e vivificar os mortos? Pois o próprio Filho diz: ‘Assim como o Pai ressuscita os mortos e os vivifica, assim o Filho vivifica aqueles que quer’ (João 5,19-21). Como o Pai fará milagres sozinho, se essas palavras não permitem entendê-las apenas do Pai ou do Filho, mas do único e verdadeiro Deus, isto é, Pai, Filho e Espírito Santo?8

Em sua resposta ao sermão dos arrianos, ele explica:

“Pois as obras do Pai e do Filho são as mesmas, mas o Filho não é o mesmo que o Pai, mas sim porque nenhuma obra é do Filho que não seja feita pelo Pai por meio dele, e nenhuma obra é do Pai que não seja feita ao mesmo tempo pelo Filho. Pois tudo o que o Pai faz, o Filho também faz. Não são algumas as obras do Filho e outras do Pai, mas as mesmas; nem o Filho as faz de maneira diferente, mas igualmente. Mas como o Filho não faz outras obras semelhantes, mas as mesmas que o Pai faz, o que é fazê-las igualmente senão fazê-las com a mesma facilidade e o mesmo poder?

Bem, sim, os dois realmente fazem as mesmas obras, mas um com mais facilidade e poder do que o outro, certamente o Filho não fará da mesma maneira. Mas como faz as mesmas obras e da mesma maneira, as obras do Filho realmente não são diferentes das do Pai e o poder de quem agem não é diferente. E, sem dúvida, também não sem o Espírito Santo, pois ele não pode estar separado dos outros dois em obras que devem ser feitas por ambos.

Assim, de uma maneira admirável e divina, os três fazem as obras de todos eles e os três fazem as obras de cada um. Porque o céu e a terra e toda criatura são obra dos três. Pois do Filho foi dito: Tudo foi feito por ele (João 1,3). Mas quem se atreveria a separar o Espírito Santo de qualquer uma dessas obras, que é conhecido por conceder graças aos santos, dos quais está escrito: Mas todas as coisas são feitas por um único e só Espírito, distribuindo o próprio para cada um conforme quer?

Finalmente, sendo Cristo Senhor de todos e Deus bendito sobre todas as coisas pelos séculos (Romanos 9,5), que obra entre todas pode ser negada ao Espírito Santo, que formou Cristo mesmo no ventre de uma virgem?

Pois quando a Virgem perguntou ao anjo, que lhe anunciava o parto futuro: Como isso acontecerá, se eu não conheço varão? (Lucas 1,34), ela recebeu essa resposta: O Espírito Santo descerá sobre ti (Lucas 1,35). Mas as obras de cada um são chamadas as que manifestam pertencer a uma pessoa.

Assim, o nascimento de uma virgem pertence apenas ao Filho; a voz da nuvem: Tu és o meu Filho amado, pertence apenas ao Pai (Mateus 3,17; 17,5); apenas o Espírito Santo apareceu na forma corporal de pomba. No entanto, toda a Trindade fez essa carne apenas do Filho, essa voz apenas do Pai, essa forma apenas do Espírito Santo. Não porque cada um deles é incapaz sem os outros de realizar o que precisa ser feito, mas porque a operação não pode ser separada; onde não apenas a natureza é igual, mas também indivisível. Pois, sendo três, cada um deles é Deus, e, no entanto, não são três deuses.

Porque o Pai é Deus, e o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e o Filho não é o mesmo que o Pai, nem o Espírito Santo é o mesmo que o Pai ou o Filho; mas o Pai é sempre Pai, e o Filho é sempre Filho, e o Espírito de ambos nunca é apenas de um deles, ou do Pai ou do Filho, mas sempre é Espírito dos dois.

No entanto, toda a Trindade é um único Deus. Pois quem negará que nem o Pai nem o Espírito Santo, mas apenas o Filho, andou sobre as águas?

Apenas o Filho tem carne, por meio da qual ele pôde pôr os pés nas águas e andar por elas. Mas de maneira alguma se pense que isso foi realizado sem o Pai, quando de todas as suas obras se diz: Mas o Pai, que permanece em mim, faz suas obras.

Tampouco sem o Espírito Santo, pois o lançar fora os demônios foi igualmente obra do Filho. É verdade que a língua daquela carne, por meio da qual ele mandava os demônios saírem, pertence apenas ao Filho; no entanto, ele mesmo diz: Eu lanço os demônios no Espírito Santo.

Além disso, quem senão apenas o filho ressuscitou? Pois só pôde morrer quem teve carne. No entanto, esta obra, pela qual o Filho ressuscitou, o Pai não foi estranho, já que dele está escrito: ‘Aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos’ (Romanos 8,18). Acaso o próprio Filho não se reanimou? Onde caberá o que disse: ‘Destruam este templo, e eu o levantarei em três dias0 (João 2,19)?

Também afirma que tem poder para entregar sua alma e para tomá-la de volta (João 10,18). E quem será o que desbarre de tal maneira a ponto de pensar que o Espírito Santo não cooperou na ressurreição de Cristo homem, quando atuou para que o próprio Cristo homem existisse?”9

Argumento nº 2 – Cristo não é Onisciente.

“Mas sobre aquela hora ninguém sabe, nem os anjos no céu, nem o Filho, mas somente o Pai.” (Marcos 13,32)

Um texto muito usado pelos arrianos, mas para tentar demonstrar que Cristo, ao não conhecer o dia e a hora do fim do mundo, é inferior a Deus e não é Deus.

Há outros textos, no entanto, que indicam a onisciência de Cristo em relação à sua natureza divina:

“…para que sejam consolados seus corações, unidos na caridade, e alcancem em toda sua riqueza a perfeita inteligência e conhecimento do mistério de Deus, de Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.” (Colossenses 2,2-3)

Sabemos agora que você sabe tudo e não precisa que ninguém lhe pergunte. Por isso acreditamos que você saiu de Deus.” (Juan 16,30)

“Ele lhe diz pela terceira vez: ‘Simão, filho de João, você me ama?’ Pedro ficou triste por ele perguntar pela terceira vez: ‘Você me ama?’ e lhe disse: ‘Senhor, você sabe tudo; você sabe que eu o amo’. Jesus lhe diz: ‘Cuide de minhas ovelhas’.”

São Hilário de Poitiers dá uma explicação um pouco longa, mas excelente:

“Mas os hereges entendem como uma negação de sua natureza divina o fato de ter sido dito: “O Pai é maior do que eu” (João 14:28); ou também: “Ninguém sabe o dia nem a hora, nem os anjos nos céus, nem o Filho, somente o Pai” (Marcos 13:32; Mateus 24:36).

Portanto, a ignorância do dia e da hora serve para negar que ele seja o Filho único de Deus; de tal maneira que o Deus gerado por Deus não teria essa perfeição de sua natureza que é própria de Deus, pois, ao necessariamente ser dominado por essa ignorância, uma força externa seria mais forte do que ele e essa o manteria na fragilidade de sua ignorância como alguém impotente diante dela.

Mais ainda: a loucura dos hereges quer nos obrigar a essa interpretação ímpia, como se tivessem o direito de impor a confissão de que é assim que se deve crer; e alegam a razão de que o Senhor disse assim e pode parecer muito irrespetuoso que o testemunho que ele dá de si mesmo seja alterado com nossa interpretação diferente.

E, em primeiro lugar, antes de falar do sentido e da razão dessas palavras, deve-se considerar, com o bom senso, se pode-se acreditar que algo ignore aquele que é o princípio de todas as coisas em seu ser e serão.

Pois se tudo existe por meio de Cristo e em Cristo e existe de tal modo por meio dele que tudo tem nele (Colossenses 1,16) seu ser, aquilo que não é estranho a ele nem deixa de existir por meio dele, como não entrará também em seu conhecimento, quando muitas vezes essa, por virtude de sua natureza, que não pode ignorar nada, abarca aquilo que não existe nem nele nem por ele?

E aquilo que não tem sua razão de ser senão a partir dele e não recebe senão nele o desenvolvimento para o que é e será. Como ficará fora do conhecimento que corresponde à sua natureza pelo qual e no qual se contém tudo aquilo que se deve fazer?

Pois o Senhor Jesus não ignora os pensamentos humanos; não só aqueles despertados por um motivo presente, mas também os que se agitarão por causa dos desejos futuros; assim o atesta o evangelista: pois Jesus sabia desde o princípio quem não acreditava e quem era o que o ia entregar (João 6,65).

Pode-se considerar que o poder de sua natureza, que abarca o conhecimento das coisas que ainda não existem e não ignora as inquietudes que os espíritos ainda tranquilos deverão suportar, desconhecia o que existe por ele e em ele?

E que seja impotente em seu próprio ser o que é poderoso em coisas estranhas, aquele do qual lembramos que se disse: Tudo foi criado por ele e em ele e ele existe antes de todos (Colossenses 1,16s); ou aquilo: Porque ele teve a vontade de que em ele habitasse toda a plenitude e por meio dele reconciliasse para ele todas as coisas? (Colossenses 1,19s).

Como em ele está toda a plenitude, todas as coisas são reconciliadas por meio dele e em ele e aquele dia é a esperança de nossa reconciliação, vai ignorar quando será aquele dia cuja fixação está nele e cujo mistério existe por ele?

Pois aquele dia é o de sua vinda, de que diz o Apóstolo: Quando Cristo aparecer, a vossa vinda, então também vós aparecereis com ele em glória (Colossenses 3,4).

Ninguém ignora o que existe por meio dele e dentro dele. Cristo virá, e ignora o dia de sua vinda? É o seu dia, como diz o mesmo Apóstolo: porque o dia do Senhor virá de noite como um ladrão (1 Tessalonicenses 5,2), e se deve acreditar que ele não o conhece?

Os seres humanos planejam o que têm que fazer, conhecem de antemão o quanto podem, e o conhecimento do que devem fazer acompanha a vontade de realizá-lo; e aquele que nasceu como Deus, ignora o que existe por meio dele e em ele?

Ele é o responsável pelos tempos e o dia está em suas mãos, pois ele determina as coisas futuras e tem o poder de decidir a sua vinda. E viverá ele na ignorância, sem conhecer aquilo que existe para ele devido à natureza grosseira de sua mente?

Será ele como as feras e as bestas selvagens, que vivem de maneira alheia a qualquer previsão, fazendo aquilo mesmo que fazem quando, movidas por qualquer impulso de seu instinto irracional, são levadas para qualquer lugar de maneira causal e incerta?

Como se pode acreditar que o Senhor da glória, por ignorar o dia de sua vinda, tenha uma natureza desintegrada e imperfeita, que, de um lado, tem a necessidade de vir e, de outro, não conhece o momento de sua vinda? Portanto, seria melhor atribuir à Deus a ignorância que tira dele o poder de conhecer…

Mas Paulo, o doutor das gentes, não tolera entre nós essa confusão do erro ímpio, segundo a qual se acredita que o Deus unigênito ignorou algo. Pois diz: Fundados no amor, sejam levados à riqueza da plena inteligência, ao conhecimento do mistério de Deus, Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência (Colossenses 2,2s).

O Deus Cristo é um mistério, e nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência. Mas isso não pode ser dito ao mesmo tempo de uma parte e do todo, porque a parte não significa o todo e o todo não pode ser interpretado como uma parte.

Mas, se o Filho ignore o dia, já não estão nele todos os tesouros da ciência. Mas, se em ele estão todos os tesouros da ciência, não ignore o dia, pois possui em si todo o tesouro da ciência. Mas nos convém lembrar que esses tesouros da ciência estão nele escondidos, mas não por estarem escondidos deixam de existir, pois estão nele porque é Deus, mas por ser mistério se escondem.

Mas para nós o mistério de Deus, Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da ciência, não está oculto nem é ignorado. E porque ele é mistério, vejamos se ele é ignorante nas coisas que não sabe.

Mas, se em outros lugares a confissão de ignorância não pode ser interpretada como desconhecimento, também agora ele não ignora o que desconhece. Pois, como sua ignorância, dado que todos os tesouros da ciência estão escondidos nele, é um propósito salvador mais do que ignorância, pode-se explicar o motivo de ignorar sem entender isso como não saber.

Pois todas as vezes que Deus diz que ignora, certamente confessa ignorância, mas não é limitado por ela.

Pois não saber de nada tem a ver com a fraqueza da ignorância, mas sim com o fato de não ser tempo de falar ou de que a oportunidade de agir ainda não chegou.

Deus fala assim a Abraão: O clamor de Sodoma e Gomorra encharcou a medida e seus pecados são muito grandes. Por isso, eu vou descer e ver se, de acordo com o seu clamor, eles chegaram ao limite; e, caso contrário, eu saberei (Gênesis 18,20s). Temos, portanto, um Deus que não sabe e que, no entanto, não ignora; pois, se sabe que os pecados são muito grandes e, ainda assim, desce para ver se eles atingiram a medida ou para saber disso se eles não a atingiram, vemos que ele não ignora isso porque não sabe, mas sim então ele sabe, porque chegou a hora de agir.

O fato de Deus saber, portanto, não é uma mudança a partir da ignorância, mas sim o pleno tempo. Ainda precisamos esperar para que ele saiba. Mas não podemos pensar em Deus que não sabe e, no entanto, ainda espera para saber; por isso, é preciso que o fato de ele não saber sabendo ou saber ignorando obedeça apenas ao propósito de falar e agir.

Portanto, não podemos duvidar de que o conhecimento de Deus é uma questão de tempo mais do que de mudança nele; pois, quando se fala em Deus saber, trata-se do momento de dar a conhecer o conhecimento mais do que no momento em que foi adquirido.

Isto mesmo é ensinado a nós com o que foi dito a Abraão: Não ponhas a mão sobre o menino e não lhe faças nada, pois agora eu conheci que temes o Senhor, teu Deus, e não perdoaste a teu filho amado por minha causa (Gênesis 22,12).

Assim, Deus sabe agora. O fato de saber agora é uma indicação de ignorância anterior; mas isso não se adequa ao ser de Deus. Também não é possível que ele ignorasse anteriormente a lealdade de Abraão, do qual foi dito: Abraão acreditou em Deus e foi considerado justo (Gênesis 15,6).

O fato de saber agora significa o momento em que Abraão recebeu esse testemunho, mas não que Deus, nesse momento, começasse a saber. Abraão com o holocausto de seu filho havia mostrado o amor que tinha a Deus. Deus o conhece nesse momento em que fala disso. Mas como não se deve pensar que antes não soubesse, temos que considerar que se diz que então ele sabe porque fala.

E entre os muitos trechos que estão contidos no Antigo Testamento sobre o conhecimento de Deus, apresentamos esses apenas como exemplo, para que se entenda que o fato de Deus não saber não é devido à sua ignorância, mas sim ao tempo.

Nos Evangelhos encontramos muitas coisas que o Senhor ignora conhecendo-as. Ele não conhece aqueles que praticam a iniquidade e se gloriam em muitos milagres feitos em seu nome, quando diz: E então juro que não os conheço. Afastem-se de mim todos vocês que praticam a iniquidade (Mateus 7,23).

Afirma até mesmo sob juramento que não conhece aqueles a quem, no entanto, não desconhece como praticadores da iniquidade. Ele não os conhece, portanto, não por ignorância, mas porque, em razão da iniquidade de suas obras, são indignos do seu conhecimento; confirma a verdade do que diz até mesmo pelo vínculo do juramento. Ele tem o poder de não ignorar na sua natureza e mantém o não saber no mistério de sua vontade…

…Quando aquele que conhece perfeitamente os pensamentos e ações pergunta, como ignorante, sobre os pensamentos e ações – como quando pergunta à mulher por que ela tocou na orla de sua roupa, ou aos Apóstolos por que discutem, ou aos que choram onde está o sepulcro de Lázaro -, não se deve pensar que realmente não sabe, mas sim que se trata de um modo de falar. Pois não faz sentido que aquele que, estando ausente, sabe que Lázaro morreu e foi sepultado, não saiba o lugar do sepulcro, e que aquele que vê os pensamentos, não tenha conhecido a fé da mulher, ou que aquele que não precisa perguntar sobre nada, tenha ignorado a discussão dos Apóstolos. Para aquele que tudo conhece, é um propósito oculto dizer de vez em quando que não conhece aquilo que ignora.

Assim, no caso de Abraão, ele esconde, por um tempo, seu conhecimento; ou no caso das virgens tolas e dos praticadores de iniquidade, em que diz que não os conhece porque são indignos; ou no mistério do filho do homem, se pergunta como se ignorasse, é devido à sua condição humana.

Aquele que se adapta à realidade de seu nascimento corporal em tudo aquilo em que está limitada nossa fraca natureza. Não porque seja, por natureza, fraco aquele que é Deus, mas porque o Deus nascido como homem assumiu as fraquezas dos homens. E as assumiu não de modo que a natureza imutável tenha se transformado em uma natureza fraca, mas de tal maneira que o mistério da encarnação teve lugar na natureza imutável, pois aquele que era Deus é homem e aquele que é homem não deixou de ser Deus.

Ao agir e se mostrar como alguém que nasceu como homem, a Palavra, que continua sendo Deus, usa com muita frequência o modo de falar próprio de seu ser de homem, e muitas vezes o modo de falar de Deus é o mesmo que o dos homens, pois diz que não sabe aquilo que não é hora de revelar ou aquilo que não merece ser conhecido.

Por isso, precisamos entender por que o Senhor afirmou que não conhece o dia. Se acreditarmos que ele realmente não o conhece, o apóstolo contradiz essa afirmação: ‘Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento.’ (Colossenses 2,3)” 10

Sobre a divindade do Espírito Santo

Assim como a Escritura identifica a Pessoa divina do Filho com o Senhor, o mesmo faz com a Pessoa do Espírito Santo.

Não é incomum encontrar em textos do Antigo Testamento onde Deus fala, que é identificado como o Espírito Santo no Novo Testamento:

“Ouvi, pois, a voz do Senhor, dizendo: Quem enviarei, e quem há de ir por nós? Respondi: Eis-me aqui, envia-me a mim. E disse ele: Vai, e dize a este povo: Ouvi bem, mas não entendeis; olhai bem, mas não vedes. Embota-se o coração desse povo; tapam os ouvidos e fecham os olhos, para que os olhos não vejam, e os ouvidos não ouçam, e o coração não compreenda, e se convertam, e eu os cure.” (Isaías 6,8-10)

O texto acima é citado por São Paulo e atribui as palavras de Deus ao Espírito Santo:

“Quando, em desacordo entre si mesmos, já estavam saindo, Paulo disse apenas isto: ‘Com razão o Espírito Santo falou aos vossos pais pelo profeta Isaías: Vai encontrar este povo e diz: Vocês ouvirão bem, mas não entenderão, olharão bem, mas não verão. Porque o coração deste povo está embotado, eles tornaram duros os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos, para que não vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos, e entendam com o coração e se convertam, e eu os cure.’” (Atos 28,25-27)

O mesmo acontece com este texto do Antigo Testamento:

“Para que vos humilheis, não endureçais o coração, como em Meribá, como no dia de Massa, no deserto; onde me tentaram os vossos pais, me puseram à prova, ainda que viram as minhas obras. Quarenta anos me enfadei dessa geração, e disse: Povo de coração extraviado, não conhecem os meus caminhos. E jurei na minha ira: Não entrarão no meu descanso.” (Salmo 95,7-11)

Na Epístola aos Hebreus é citado este texto onde Deus fala e suas palavras são novamente atribuídas ao Espírito Santo:

“Portanto, como diz o Espírito Santo: Se hoje ouvirdes a sua voz, endurecei os vossos corações como no dia da rebelião, no dia da tentação no deserto. Quando vossos pais me tentaram, me puseram à prova e viram as minhas obras por quarenta anos. Por isso, indignei-me contra essa geração e disse: Eles sempre andam errados no coração e não conheceram os meus caminhos. Por isso, jurei em minha ira: Eles não entrarão no meu repouso.” (Hebreos 3,7-11)

A Escritura identifica o Espírito Santo como uma pessoa, ao contrário da crença herege de seitas como os testemunhas de Jeová, que vêem o Espírito Santo como uma força impersonal, ou como “a força de Deus na terra”.

Uma força impersonal não pode se entristecer, ao contrário da Segunda Pessoa da Trindade.

E não aflijais o Espírito Santo de Deus, pelo qual fostes selados para o dia da redenção.” (Efésios 4,30)

Também é possível pecar contra o Espírito Santo:

“Por isso vos digo: Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. Aquele que disser uma palavra contra o Filho do homem será perdoado, mas aquele que disser uma palavra contra o Espírito Santo não será perdoado, nem neste século nem no século futuro.” (Mateus 12,31-32)

O Espírito Santo pode ser resistido:

“Endurecidos de cerviz, incircuncisos de coração e de ouvidos! Sempre resistis ao Espírito Santo, como também vossos pais.” (Atos 7,51)

O Espírito Santo consola:

“Estas coisas, pois, tendo dito, ainda assim, podemos dizer que o sangue dos touros e dos cabritos e a cinza de uma novilha aspergida sobre os contaminados os santifica quanto à purificação da carne.” (Hebreus 9,31)

O Espírito Santo é enviado pelo Pai e ensina:

“Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito.” (João 14,26)

O capítulo 16 do Evangelho de João diferencia claramente as Três Pessoas Divinas. Cristo anuncia que irá ao Pai e que o Pai enviará em Seu Nome o Espírito Santo:

“Mas eu vos digo a verdade: Conviém-vos que eu vá; pois, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, vo-lo enviarei. E, vindo ele, convencerá o mundo de pecado, de justiça e de juízo. De pecado, porque não crêem em mim; de justiça, porque vou para o Pai, e já não me vereis; de juízo, porque o príncipe deste mundo já foi julgado. Ainda tenho muitas coisas que vos dizer, mas vós não as podeis suportar agora. Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; pois não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará as coisas que hajam de vir. Ele me honrará, porque receberá do que é meu, e vos o anunciará.” (João 16,7-13)

O Espírito Santo também é Deus, por isso São Paulo pode dizer com propriedade:

Não sabeis que sois templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá a ele; pois o templo de Deus é santo, e esse é o templo de que sois vós.” (1 Coríntios 3,16-17)

São Cirilo de Alexandria explica de seguinte maneira:

“A quem está tão cheio de ignorância proponho que responda a esta pergunta: Como podemos ser templos de Deus os que, segundo diz Paulo, temos o Espírito Santo que habita em nós, se o Espírito não for Deus por essência?

Se ele for uma criatura e obra de Deus, então por que razão Deus nos destrói, se somos nós que destruímos o templo de Deus, profanando nosso corpo no qual habita o Espírito Santo, que tem a mesma e única essência de Deus Pai e do Filho unigênito?

Se não fosse assim, não seria verdade o que disse o Salvador: Se alguém me ama, guardará minha palavra e meu Pai o amará e a ele viríamos e nele faremos morada, pois devemos levar em conta que o Espírito habita em nós e que por meio dele acreditamos ter conosco o Pai e o Filho, tal como diz o próprio João em uma de suas cartas: Neste conhecemos que permanecemos nele e ele em nós, que nos deu de seu Espírito.”11

Também é oportuno citar São Basílio de Cesaréia, que explica como os nomes que se referem ao Pai e ao Filho são comuns ao Espírito Santo:

“Ele é chamado de ‘Espírito’, como em: Deus é Espírito e em: Cristo Senhor é o Espírito do nosso rosto. É ‘Santo’, assim como o Pai é santo e o Filho é santo. Efetivamente, para a criatura, a santidade foi introduzida de fora, enquanto que, para o Espírito, a santidade é plenitude de natureza. Por isso também não é ‘santificado’, mas ‘santificador’.

Ele é ‘Bom’, assim como o Pai é bom e o Filho, gerado pelo bom, é bom, e tem por essência a bondade. É ‘Reto’, assim como o Senhor Deus é reto, porque ele mesmo é verdade e justiça, sem desviar-se ou inclinar-se em nenhum sentido, em razão da inmutabilidade de sua ciência.

Ele é ‘Consolador’, assim como o Unigênito, segundo o que este mesmo diz: Eu pedirei ao meu Pai e vos dará outro Consolador. Assim, os nomes que se referem ao Pai e ao Filho são comuns ao Espírito Santo, que recebe estes apelativos por razão de sua afinidade de natureza. De onde mais poderia efetivamente vêm?

Ele é chamado também de Espírito Guia, Espírito da verdade, Espírito de sabedoria. O Espírito que me fez foi um Espírito divino. E a Besaleel – diz – encheu Deus de Espírito divino de sabedoria, de inteligência e de ciência. Tais são, portanto, os nomes, grandes demais, mas certamente sem exagero, sobre a glória.”12

Notas de rodapé

  1. Ireneu de Lyon, Contra as heresias IV,20,3
  2. Ireneu de Lyon, Contra as heresias IV,20,1
  3. Tertuliano, Contra Práxeas, 12
    Johannes Quasten, Patrologia I, BAC 206, Quinta Edição, Madrid 1995, p. 622
  4. Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus, XVI,6,1
    Biblioteca da Igreja Reformada, http://www.iglesiareformada.com/Agustin_Ciudad_16.html
  5. Ambrósio de Mediolano, O Espírito Santo, III, 109-111
    Biblioteca Patrística Ciudad Nueva, Madrid 1986ss, 41, 225-226
    Guillermo Pons, La Trinidad en los Padres de la Iglesia, Editorial Ciudad Nueva, Madrid 1999, p. 56
  6. Agostinho de Hipona, Réplica ao Sermão dos arrianos, XXIV, 27
    Obras completas de San Agustín, Tomo XXXVIII, BAC 512, Madrid 1990, p. 329
  7. Agostinho de Hipona, A Trindade, I,7,14
    Obras completas de San Agustín, Tomo V, BAC 39,  Madrid 1985, p.142
  8. Agustinho de Hipona, A Trindade, I, 6, 11
    Obras completas de San Agustín, Tomo V, BAC 39,  Madrid 1985, p. 137-138
  9. Agostinho de Hipona, Réplica ao Sermão dos arrianos, XV
    Obras completas de San Agustín, Tomo XXXVIII, BAC 512, Madrid 1990, p. 305-308
  10. Hilário de Poitiers, A Trindade, IX, 58-67.
    San Hilario de Poitiers, La Trinidad, BAC 481, Madrid 1986, p. 492-502
  11. Círilo de Alexandria, Comentário ao Evangelho de São João, 1,13
    Migne Patrología Griega, 161 vols., París 1875ss, 73,157
    Guillermo Pons, El Espíritu Santo en los Padres de la Iglesia, Ciudad Nueva, Madrid 1998, p. 24
  12. Basílio de Cesaréia, O Espírito Santo, 19,48
    Biblioteca de Patrística, Ciudad Nueva, Madrid 1986ss 32, p. 188-189
    Guillermo Pons, El Espíritu Santo en los Padres de la Iglesia, Ciudad Nueva, Madrid 1998, p. 23-24
Scroll to Top